TESTEMUNHOS

25 de Abril - Textos de Miguel Torga


Coimbra, 25 de Abril de 1974 - Golpe militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder à tirania. Quem poderá esquecê-lo? Mas pronto: de qualquer maneira, é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada...

Coimbra, 27 de Abril de 1974 - Ocupação das instalações da Pide. Enquanto, juntamente com outros veteranos da oposição ao fascismo, presenciava a fúria de alguns exaltados que reclamavam a chacina dos agentes, acossados lá dentro, e lhes destruíam as viaturas, ia pensando no facto curioso de as vinganças raras vezes serem exercidas pelas efectivas vítimas da repressão. Há nelas um pudor que as não deixa macular o sofrimento. São os outros, os que não sofreram, que se excedem, como se estivessem de má consciência e quisessem alardear um desespero que jamais sentiram.


Coimbra, 25 de Abril de 1975 - Eleições sérias, finalmente. E foi nestes cinquenta anos de exílio na pátria a maior consolacão cívica que tive. Era comovedor ver a convicção, a compostura, o aprumo, a dignidade assumida pela multidão de eleitores a caminhar para as urnas, cada qual compenetrado de ser portador de uma riqueza preciosa e vulnerável: o seu voto, a sua opinião, a sua determinação. Parecia um povo transfigurado, ao mesmo tempo consciente da transcendência do acto que ia praticar e ciente da ambiguidade circunstancial que o permitia. O que faz o aceno da liberdade, e como é angustioso o risco de a perder! Assim os nossos corifeus saibam tirar do facto as devidas conclusões. Mas duvido. Nunca aqui os dirigentes respeitaram a vontade popular, mesmo quando aparentam promovê-la. No fundo, não querem governar uma sociedade de homens livres, mas uma sociedade de cúmplices que não desminta a degradação deles.


Coimbra, 25 de Abril de 1977 - O que são as vidas! Chegado ao termo da minha, é que vejo como gastei os anos a correr atrás de foguetes doutra romaria. O que eu me desesperei por coisas perfeitamente vãs, a energia que gastei a cumprir deveres absurdos! Escrever era fundamentalmente o que me importava. E foi à escrita que dei menos horas e as mais cansadas. A maior parte do tempo perdi-o a ser médico, chefe de família, cidadão. Um médico apenas escrupuloso, um chefe de família apenas cumpridor, um cidadão apenas honrado. Em cursivo é que punha a paixão e a esperança. Mas roubei à caneta os melhores momentos, e fiz os versos quase às escondidas, como quem pratica vícios secretos. Em vez de me entregar de corpo e alma à vocaçao, servi-a como Deus é servido. E agora pego-lhe com um trapo quente. Nem posso voltar atrás, nem arrepiar caminho. É tarde demais para tudo. Até para morrer.


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