CABO VERDE




CONTRIBUTOS HISTÓRICOS PARA A INDEPENDÊNCIA DE CABO VERDE

2 YEARS AGO BY  IN HISTÓRIATODOS OS ARTIGOS TAGGED: 
Dada a sua localização geográfica, Cabo Verde sempre foi um ponto estratégico para o governo colonial português. Situado entre o eixo Europa, África e América, Cabo Verde assumiu especial relevo no comércio de escravos provenientes da costa africana. Na Ribeira Grande, na Ilha de Santiago, os portugueses construíram a primeira cidade além-mar, de onde partiam missões de evangelização e captura e venda de escravos. A sua importância para a Coroa portuguesa era tal que, em 1550 foi nomeado um Capitão Geral para Cabo Verde e Guiné, responsável pela administração comum dos dois territórios. Esta ligação administrativa de Cabo Verde e Guiné (na altura a Guiné assumia a denominação de “Guiné de Cabo Verde”) iria manter-se até princípios do século XIX, onde por decreto de 18 de março de 1879, a Guiné seria desanexada do arquipélago, passando a constituir uma província autónoma, dotada de um governo-geral independente do da Praia.
O fim do colonialismo português em África, enquadra-se no contexto da desagregação dos grandes impérios coloniais europeus, iniciada com a Primeira Guerra Mundial. Apesar de resistir até à década de setenta, embora com grandes pressões internacionais, o colonialismo português foi dos últimos a resistir a uma onda de mudança iniciada nos anos 50.
Em 1951, foi fundado pelos jovens da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, o Centro de Estudos Africanos, cujo objetivo era a pesquisa da identidade africana, visando a redescoberta daquele continente.
Amílcar Cabra (segundo a contar da direita) em Marcelino dos Santos (segundo em pé a contar da esquerda. Lisboa, 1948
Amílcar Cabra (segundo a contar da direita) em Marcelino dos Santos (segundo em pé a contar da esquerda. Lisboa, 1948
Em 1956, provenientes da Casa dos Estudantes do Império, um grupo de cabo-verdianos e guineenses, motivados pelo descontentamento e humilhações a que durante séculos foram submetidos os seus povos, iniciaram um plano para unir os dois territórios, depois de conquistadas as respetivas independências. Fundam em 1957 o MAC – Movimento Anti Colonial, cuja finalidade era a luta contra o colonialismo português em África. Foi nesta fase de tomada de consciência, que surgiram nas colónias portuguesas, os movimentos nacionalistas, entre os quais o PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, que, segundo o seu líder, Amílcar Cabral, tinha como objetivo a integração da tradição de resistência patriótica dos povos da Guiné e de Cabo Verde, mas agora com um novo e bem definido objetivo: a expulsão dos colonialistas e a consequente soberania dos seus Estados.
Com a criação do PAIGC aparece, pela primeira vez na história do povo da Guiné e Cabo Verde, uma organização de luta que se propõe libertar os dois povos do colonialismo português. As primeiras células clandestinas do Partido foram criadas em Bissau, Bolama e Bafatá. Os três grandes objetivos do partido eram a conquista imediata da independência da Guiné e de Cabo Verde, a democratização, a emancipação das populações guineenses e cabo-verdianas e a realização de um rápido progresso económico e social.
O princípio da unidade da Guiné e Cabo Verde baseava-se no facto de, dada a natureza histórica dos dois territórios, com uma mesma tendência económica, Cabo Verde e Guiné eram entendidos como um só.
A luta pela independência dos povos coloniais, teve como base o princípio da autodeterminação das populações. Com a criação da Organização das Nações Unidas, esta autodeterminação ganhou nova força e uma nova era anticolonial nasceria. Na década de 60, a ONU intensifica as ações de defesa dos processos de auto determinação dos povos, tornando-se o principal instrumento da descolonização. Em 1960, dos 117 membros da Organização das Nações Unidas, 50 tinham recentemente deixado de ser colónias de outros países membros. O aumento do número de países recém-independentes, fez aumentar a pressão a favor da descolonização.
A 14 de dezembro de 1960, é aprovada e adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a Resolução 1514, que proclama a necessidade de pôr termo a quaisquer formas de colonialismo, reconhecendo o direito à autodeterminação dos povos como um direito fundamental.  Esta data seria para sempre um marco importante no processo de descolonização do continente africano.
Em 1963, criou-se em Adis Abeba, a Organização da Unidade Africana, cujos principais objetivos eram a promoção da unidade entre os Estados africanos, a defesa da soberania, integridade territorial, independência dos seus Estados membros e erradicação de todas as formas de colonialismo em África. Foi a primeira vez que países africanos tomaram uma posição firme contra o colonialismo no continente.
Portugal, atento ao que se estava a passar no mundo, defendeu uma assimilação cultural, numa tentativa de evitar os movimentos autonomistas dos povos coloniais. Esta ideia teve forte contestação de alguns nacionalistas africanos, incluindo o próprio Amílcar Cabral, que a ridicularizou ao afirmar que “Portugal é um país subdesenvolvido com 40% de analfabetos e o seu nível de vida é o mais baixo a Europa. Se conseguisse ter uma “influência civilizadora” sobre qualquer povo, seria uma espécie de milagre”.
Portugal, através de Adriano Moreira, compreendeu a necessidade urgente de reformar a sua estrutura colonial, pelo que promoveu uma série de medidas para diminuir situações de descriminação de que eram vítimas as populações negras, sendo a mais significativa a medida para a abolição do estatuto do indigenato.
Contudo, a repressão da polícia política do regime colonial português, a PIDE, obriga os dirigentes do PAIGC a saírem da Guiné e a refugiarem-se em países vizinhos, nomeadamente na Guiné Conacri e no Senegal, onde procuraram apoio político para a luta armada. Esta luta armada foi legitimada, segundo os seus líderes, pelo facto do Estado Português não se mostrar recetivo ao diálogo, por forma a se poder encontrar uma saída política com base na diplomacia, para a independência da Guiné e de Cabo Verde.
O início da luta armada foi uma necessidade face à falta de diálogo do regime colonial português.
O início da luta armada foi uma necessidade face à falta de diálogo do regime colonial português.
Em Cabo Verde, apesar de algumas agitações verificadas durante o século XIX e inícios do século XX, até às primeiras manifestações das estruturas clandestinas do PAIGC, viveu-se uma certa apatia relativamente à oposição política ao poder colonial. O movimento claridoso, considerado por uns como a “verdadeira proclamação da independência cultural de Cabo Verde”, é acusado de pouco ou nada ter feito para a independência política do arquipélago. Contudo, com o regresso da Guiné-Bissau de Abílio Duarte, dá-se uma reviravolta na consciencialização nacionalista em Cabo Verde. A pretexto do desenvolvimento cultural e académico, Abílio Duarte, reúne no Mindelo muitos jovens, o que acabou por se revelar vital para a mobilização de ativistas pela luta de libertação nacional. Contudo, depois de saída de Abílio Duarte do panorama mobilizador em São Vicente (devido à perseguição infringida pela PIDE naquela ilha do arquipélago), Santiago tornou-se o baluarte da luta clandestina em Cabo Verde contra o colonialismo português.
Na primeira década de 1960, já se colocava a hipótese de desencadear a luta armada em Cabo Verde. Num comunicado difundido de Dakar a 21 de julho de 1963 e dirigido “aos combatentes, responsáveis e militantes do partido” e a “todos os guineenses e cabo-verdianos”, Amílcar Cabral chama a atenção para a necessidade de “intensificação da luta em Cabo Verde, para faze-la passar da fase política à fase de ação direta, que poderá ser a luta armada”.
Contudo, em 1968, a PIDE desferiu um rude golpe à estrutura clandestina do PAIGC ao prender os seus principais dirigentes, entre os quais Luís Fonseca, Carlos Tavares e Jaime Scholfield, cuja principal missão em Santiago era precisamente preparar um possível desembarque de homens afetos a Cabral, e para a qual executaram, sob a orientação de Reis Tavares, missões de reconhecimento dos melhores locais nas várias costas da ilha.
Em 1968, Marcelo Caetano sucede a Salazar no poder, mas continua a política do seu antecessor, apenas mostrando alguma flexibilidade no que dizia respeito à Lei Orgânica do Ultramar, consubstanciada na revisão constitucional de 1971, em que é concedido, “a título honorífico”, o estatuto de Estado a Angola e Moçambique, permitindo que estes territórios possuíssem Governos, Assembleias e Tribunais próprios.
Esta estratégia de confundir a opinião pública internacional, não passou despercebida por parte de certos nacionalistas africanos, os quais voltaram a insistir na luta armada como forma de resolver a questão da independência dos dois territórios, a ponto de, em agosto de 1971, o Conselho Superior da Luta do PAIGC ter decidido preparar a proclamação da independência da Guiné-Bissau.
Um ano antes, em 1970, teve lugar a conferência de Roma, cujo mote foi a solidariedade para com os povos das colónias portuguesas. Esta conferência foi coroada com a audiência concedida pelo Papa Paulo VI aos três lideres dos movimentos nacionalistas: Amílcar Cabral do PAIGC, Agostinho Neto do MPLA (Angola) e Marcelino dos Santos da FRELIMO (Moçambique). Cabral falou em nome dos três movimentos, ao que o Papa respondeu, afirmando que a Igreja estaria do lado dos que sofrem, da liberdade e da independência nacional de todos, em particular dos povos africanos. Esta posição do Vaticano demarcava-se claramente do colonialismo português e constituiu uma grande vitória no plano internacional dos movimentos nacionalistas.
O rápido desenvolvimento da luta político-militar na Guiné-Bissau, contrastava com o que se passava em Cabo Verde. Para fomentar a luta política no arquipélago, foi decidido no Segundo Congresso do PAIGC, criar a Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, constituída apenas por cabo-verdianos da qual faziam parte Pedro Pires, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva e Olívio Pires, todos membros do Conselho Superior da Luta.
A convite do PAIGC, uma missão especial da ONU visitou, de 1 a 8 de abril de 1972, as regiões libertadas. Na sequência dessa visita, o Comité da Descolonização, aprovou a 13 de abril de 1972 uma resolução, na qual reconhece o PAIGC como o único e legítimo representante do povo na Guiné e Cabo Verde, o que lhe conferiu o estatuto de observador nesta organização, a 22 de novembro de 1972.
Missão de observadores da ONU em visita às áreas libertadas da Guiné-Bissau em 1972
Missão de observadores da ONU em visita às áreas libertadas da Guiné-Bissau em 1972
Este somar de vitórias político-diplomáticas, junto com as vitórias militares, levaram o PAIGC em 1973 a declarar, na área libertada de Medina de Boé, a independência unilateral da República da Guiné-Bissau, logo reconhecida por mais de oitenta países e saudada pela ONU. Estas vitórias retumbantes sobre o colonialismo português, levaram à afirmação do PAIGC na cena política internacional.
Amílcar Cabral, numa conferência do CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas realizada em DAR-ES-SALAM, chamou a atenção para a responsabilidade dos antifascistas portugueses perante os sacrifícios que a guerra estava a impor aos povos africanos e à própria juventude portuguesa, afirmando que se tornava necessário abrir uma quarta frente de luta em Portugal. Caso os antifascistas não o fizesse, os movimentos de libertação ver-se-iam na obrigação de levar a guerra para território português.
O 25 de Abril de 1974 em Portugal marca o fim do regime fascista.
O 25 de Abril de 1974 em Portugal marca o fim do regime fascista.
Na noite de 24 para 25 de abril de 1974, essa “quarta frente” abrir-se-ia em Portugal. Os militares portugueses acabaram por destituir o regime fascista de Marcelo Caetano, pondo assim, fim a um regime que impunha sacrifícios ao povo português e aos africanos.
Na sequência da Revolução de Abril, cessaram as hostilidades nas colónias e iniciou-se o processo de negociações que iria conduzir ao desmantelamento do império português em África e à completa independência das colónias.
O dia 25 de abril de 1974, quase passou despercebido em Cabo Verde. Mesmo entre as pessoas politicamente mais esclarecidas, havia muitas reservas. Só no dia 30 de abril é que o povo despertou da sua habitual sonolência, dando vivas ao PAIGC e à independência, sem no entanto terem clara noção do que aquilo significava.
A primeira aclamação, realizada de forma quase espontânea, verificou-se no dia 1 de maio. Em Santiago, a movimentação política centrou-se em torno da libertação dos presos políticos do Campo de Concentração do Tarrafal.
Libertação dos presos políticos da Cadeia do Tarrafal.
Libertação dos presos políticos da Cadeia do Tarrafal.
A par dessas movimentações políticas populares, os partidos políticos começaram a emergir da clandestinidade: o PAIGC, a UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde) e um novo partido político apareceu também na cena política, a UDC – União Democrática Cabo-verdiana.
Festejado o derrube do regime colonial, surgiu alguma desconfiança por parte do PAIGC quanto ao rumo a dar à questão colonial. A 6 de maio, o Comité Executivo da Luta efetuou uma declaração onde defende a irreversibilidade dos princípios defendidos pelo PAIGC, nomeadamente o reconhecimento da República da Guiné-Bissau e do direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência; o reconhecimento deste mesmo direito aos povos das outras colónias e a abertura imediata de negociações com ou sem cessar-fogo.
De abril a dezembro de 1974, viveu-se em Cabo Verde um período multipartidário, com as várias forças políticas a movimentarem-se, procurando cada uma divulgar os seus ideais e assim reforçar a sua implementação popular. Nas principais ilhas do arquipélago, travou-se uma árdua luta política em torno de três questões: a independência total e imediata tendo por base a unidade Guiné e Cabo Verde, defendida pelo PAIGC; a independência total sem a unidade com a Guiné, defendida pela UPICV; e uma federação com Portugal, defendida pela UDC.
A confrontação política entre o PAIGC e a UPICV marcou esse breve período da história do país. A UDC como porta-bandeira da solução federal, desapareceu na cena política com o 28 de setembro em Portugal, acusada de estar envolvida com o partido do progresso. Esta movimentação política pluralista em Cabo Verde, terminaria em dezembro de 1974.
Após a Revolução de Abril, aumentaram as pressões internacionais sobre o governo português com vista a uma definição clara das suas posições, no que dizia respeito ás colónias. As dificuldades de manter a guerra em África, as pressões internacionais sobre o poder político em Lisboa para que clarificasse a sua posição acerca da descolonização e a existência de movimentos a favor da independência das colónias no interior do próprio governo, levaram ao reconhecimento do direito de autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo a aceitação da independência dos territórios ultramarinos.
A primeira ronda negocial iniciou-se em Dakar. Após duas horas na residência do primeiro-ministro senegalês, a delegação portuguesa e os representantes do PAIGC acordaram voltar a encontrar-se novamente a 25 de maio. Este encontro em Dakar satisfez a necessidade de Amílcar Cabral “obrigar Portugal a sentar-se à mesa de negociações”. Dessa conversação, resultou o reconhecimento do PAIGC como o único movimento de libertação da Guiné.
A 25 de maio, em Londres, pela delegação portuguesa estiveram presentes Mário Soares, Almeida Bruno, Almeida Santos e Jorge Campino. O PAIGC fez-se representar por Pedro Pires (chefe da delegação), José Araújo, Umaru DJalo, Lúcio Soares, Júlio Semedo e Gil Fernandes. As questões que levantaram mais polémica eram o futuro das colónias (Spínola queria formar uma comunidade lusíada em moldes federativos) e Cabo Verde, em que o PAIGC exigia que o governo português reconhecesse o seu direito à independência.
O PAIGC aceitou pôr Cabo Verde de fora. O argumento utilizado por Portugal foi a inexistência de conflito armado no território.
A última ronda negocial decorreu em Argel. O PAIGC continuava a pretender a resolução conjunta dos casos da Guiné e Cabo Verde e Portugal permanecia na valorização do cessar-fogo em detrimento do caso de Cabo Verde.
Encontro entre o PAIGC e o Governo português. Lisboa, 18 de setembro de 1974
Encontro entre o PAIGC e o Governo português. Lisboa, 18 de setembro de 1974
O Acordo foi finalmente assinado a 26 de agosto de 1974 em Argel, e previa para 10 de setembro o reconhecimento de júri da República da Guiné-Bissau. Este acordo continha nove artigos, dois dos quais relativos a Cabo Verde: o artigo 6º e o artigo 7º. No artigo 6º o governo português reafirma o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência e garante a efetivação desse direito de acordo com as resoluções pertinentes das Nações Unidas, tendo também em conta a vontade expressa da Organização da Unidade Africana. O artigo 7º estabelece que o governo português e o PAIGC consideram que o acesso de Cabo Verde à independência, no quadro geral da descolonização dos territórios africanos sobre dominação portuguesa, constitui fator necessário para uma paz duradoura e uma cooperação sincera entre a república portuguesa e a república da Guiné-Bissau.
O Acordo de Argel constituiu um facto histórico no processo da descolonização, pois foi a primeira forma de aplicação por Portugal do direito à autodeterminação, o que já tinha sido reconhecido através da lei 7/74.
O processo negocial da independência de Cabo Verde iniciado em Londres e acordado em Argel, não saiu da esfera política, pelo menos até dezembro de 1974. Apesar das autoridades portuguesas indiretamente terem reconhecido o PAIGC como representante do povo de Cabo Verde e, de abril a agosto o PAIGC ter demonstrado a sua força política, as autoridades portuguesas resistiram a uma transmissão pura e simples do poder, em benefício exclusivo deste partido, uma vez que era do interesse de Portugal que o povo cabo-verdiano pudesse referendar a independência.
Uma série de encontros entre o PAIGC e o governo português, levou à assinatura, a 18 de setembro de 1974 em Lisboa, de um acordo que estabelecia um calendário para o processo de descolonização de Cabo Verde.
O Acordo de Lisboa contém 19 artigos, entre os quais, a criação de um governo de transição (artigo 5º), a composição desse governo de transição (artigo 9º), a eleição de uma assembleia representativa do povo de Cabo Verde, dotada de poderes soberanos e constituintes e que teria por função declarar a independência de Cabo Verde (artigo 10º) e a data da proclamação da independência (artigo 11º). Nenhum dos artigos reconhecia o PAIGC como o único e legítimo representante do povo de Cabo Verde.
Com a tomada de posse do governo de transição a 31 de dezembro, emergiu em Cabo Verde um Estado com soberania dividida entre o governo português e o PAIGC. O Acordo de Lisboa também estipulava que no dia 31 de Junho de 1975, se realizariam eleições para a Assembleia Constituinte. A lei eleitoral aprovada pelo decreto-lei nº 203/75, afastava o PAIGC, enquanto partido político, das eleições, pois as listas dos candidatos a deputados deviam ser apresentadas por cidadãos e não por partidos políticos. Neutralizadas algumas tentativas de listas concorrenciais, a lista única dominada por influência do PAIGC acabou por arrecadar 90% dos votos e eleger os 56 deputados, todos afetos ao Partido. Foi desta forma que o PAIGC, em Cabo Verde, acabou por legitimar o seu poder.
A primeira sessão legislativa com o objetivo de constituir a Assembleia Nacional de Cabo Verde, decorreu no dia 4 de julho de 1975. Para Chefe de Estado, foi eleito por aclamação, Aristides Pereira, secretário-geral do PAIGC e, também por aclamação, foi eleito para primeiro-ministro, Pedro Verona Rodrigues Pires, Presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC.
Aristides Pereira no momento solene de juramento a quando da tomada de posse como Presidente da República de Cabo Verde.
Aristides Pereira no momento solene de juramento a quando da tomada de posse como Presidente da República de Cabo Verde.
A 5 de julho de 1975 foi proclamada a independência de Cabo Verde sob a égide de um partido binacional, força política e dirigente do Estado e da sociedade em Cabo Verde e na Guiné-Bissau.


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Cabo Verde: o processo da luta de libertação nacional
 1) O despertar da consciência nacionalista A consciência nacionalista, isto é, a ideia de um povo em se reconhecer como nação e lutar para a conquista e consolidação da sua independência, em qualquer circunstância, não é fruto do acaso. É antes de mais um processo, marcado por diversos factores e etapas, muitas vezes, difíceis de serem explicitados. No caso de Cabo Verde, o despertar da consciência nacionalista teve a sua génese com a formação da elite letrada, a partir do século XIX. Devido à situação degradante do arquipélago e à subjugação colonial do povo cabo-verdiano, a elite letrada passou a manifestar uma atitude contestatária face ao poder colonial. Os intelectuais como Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Luís Loff e, posteriormente, os claridosos, através dos seus escritos e produções literárias, denunciaram os problemas que afectavam as ilhas e a sua população e exaltaram a dignidade e a identidade do povo cabo-verdiano, ante a pretensa superioridade étnico-cultural do colonizador português. Pouco a pouco, a consciência crítica face ao colonialismo português nas ilhas foi se fortalecendo, embora ainda sem uma aspiração claramente nacionalista (não obstante alguns tenham tido manifestado alguma aspiração emancipatória). Entretanto, na década de 1940, surgiu uma nova geração de intelectuais que, sob influência de vários factores e inspirados pelos seus antecessores, passaram a opor-se ao colonialismo português e a reivindicar o direito à independência, enquanto povo e nação. Essa tomada de consciência da nova elite intelectual (que lutou pela emancipação da nação cabo-verdiana) teve o seu epicentro em Portugal, na Casa dos Estudantes do Império. Vejamos como isso aconteceu. a) A Casa de Estudantes do Império Como não havia Universidade nas Colónias, os jovens que terminavam o liceu, caso quisessem frequentar o ensino superior, eram forçados a viajar para a Metrópole. Para acolher, apoiar e controlar os estudantes dos territórios ultramarinos, que iam para Portugal para fazer a sua formação universitária, o Governo de Salazar criou a Casa de Estudantes do Império (CEI) em Julho de 1944. Com a criação da CEI o regime do Estado Novo pretendia fortalecer a mentalidade imperial e o sentimento da portugalidade entre os estudantes das colónias. No entanto, desde cedo, a Casa despertou neles uma consciência crítica sobre a ditadura e o sistema colonial português. Isso aconteceu, em parte, graças à criação do Centro de Estudos Africanos (CEA), em 1951, pela iniciativa dos estudantes africanos em Portugal. Nesse centro eles se encontravam para estudar e analisar assuntos e problemas de África, através de debates e leituras de livros de literaturas, geografia, cultura e história de África. Começaram a pensar e a problematizar seriamente a sua situação enquanto homem negro e colonizado. Debruçaram-se sobre a questão do colonialismo e os seus efeitos sobre os africanos. Pouco a pouco, tomaram consciência da necessidade de alterar toda a situação de exploração e dominação a que os africanos eram submetidos por parte dos portugueses. Assim, foi nesse contexto é que começou a surgir, no seio da CEI, uma elite intelectual cabo-verdiana com uma consciência nacionalista e anticolonialista. Dessa elite intelectual faziam parte Amílcar Cabral, Aguinaldo Brito Fonseca, Gabriel Mariano Lopes da Silva, Ovídio de Sousa Martins, José Leitão da graça, Onésimo Silveira, Francisco Lopes da Silva, entre outros. A situação económica e social do arquipélago, o estado de abandono em que se encontravam as ilhas e, sobretudo, o sentimento de desprezo que sentiram na metrópole por parte dos próprios portugueses, aliados a outros factores, contribuíram para que essa geração tomasse consciência da sua situação de colonizado e passasse a lutar pela sua emancipação. Essa geração de intelectuais, já portadora de uma ideologia nacionalista, passou a mobilizar a população na luta contra o domínio colonial português. Organizou o movimento de luta de libertação nacional e, posteriormente, veio a desencadear a luta armada para a conquista da independência de Cabo Verde e Guiné-Bissau. Fica evidente, portanto, que a CEI foi o berço em Portugal do nacionalismo das ex-colónias. Essa Casa contribuiu para o despertar da consciência nacionalista dos africanos das antigas colónias portuguesas. Muitos dos alunos que passaram por essa Casa viriam a assumir importantes responsabilidades na luta anticolonial e de libertação dos antigos territórios em África, como Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Eduardo Mondlane e Marcelino dos Santos. 2) A luta de libertação nacional Desde os primórdios da ocupação/povoamento de Cabo Verde, várias foram as formas de resistência (tanto pacífica como violenta) à dominação colonial portuguesa: fuga de escravos para se subtraírem aos horrores da escravidão a que eram submetidos; revoltas e insurreições nas quais se destacam: Revolta de Engenhos (1822); Revolta de escravos (1935); Revolta de Achada Falcão (1841); Revolta de Ribeirão Manuel (1910), Revolta de Achada Portal (1920); Revolta de Nhô Ambrósio (1934). Todos esses movimentos sociais, cuja ocorrência foi motivada pelo descontentamento e repúdio dos cabo-verdianos face aos males do colonialismo português, constituem antecedentes ou raízes remotas da luta pela independência nacional. Todavia, a ideia de luta para a libertação nacional tomou corpo somente nos anos 40 com a geração de Amílcar Cabral e ganhou força e expressão a partir de 1956 com a criação do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (P.A.I.G.C.), que mais tarde conduziu os povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde na sua luta pela independência nacional. a) A fundação do PAICG O Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (P.A.I.G.C.) foi criado em 1956, por um grupo de nacionalistas cabo-verdianos e guineenses: Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Júlio Almeida, Rafael Barbosa e Elisé Turpin. As primeiras células clandestinas foram criadas em Bissau, Bolama e Bafatá. A criação desse Partido visava essencialmente a conquista imediata da independência da Guiné e Cabo Verde e a realização de um rápido progresso económico e social dos povos da Guiné dita portuguesa e de Cabo Verde. Inicialmente, os nacionalistas desenvolveram uma série de acções de mobilização e reivindicações. Realizaram manifestações, greves, reclamações, abaixo-assinados, etc. a fim de lutar contra o colonialismo português. Tentaram chegar à independência por meios pacíficos. Em resposta, o governo colonial aumentou a vigilância e a repressão. Em agosto de 1959, no porto da Guiné-Bissau, ocorreu o “Massacre de Pidjiguiti”. A polícia portuguesa reprimiu violentamente uma greve de estivadores, matando cinquenta e ferindo mais de cem pessoas, no cais de Bissau. Com o massacre de Pidjiguiti os dirigentes do PAIGC, convenceram-se de que a libertação da Guiné e de Cabo Verde não seria possível por via pacífica. Decidiram, então retirar-se dos centros urbanos, para escapar da vigilância e repressão e dirigir-se para países vizinhos (Senegal e Guiné Conacri) a fim de procurar refúgio e apoio político para o arranque da luta armada. A estrutura do PAIGC se instalou na Guiné Conacri, incluindo o seu secretariado. A partir de então, o PAIGC desenvolveu acções políticas e diplomáticas no sentido de obter apoios materiais, financeiros e políticos de modo a criar as condições necessárias para viabilizar o projecto da luta armada. Ao mesmo tempo, foi iniciada uma intensa campanha de mobilização dos camponeses no interior da Guiné para a participação na luta de libertação nacional. b) A mobilização em Cabo Verde Em 1958, Abílio Duarte chegou à ilha de S. Vicente, vindo da Guiné, com o propósito de iniciar a mobilização clandestina de cabo-verdianos e assegurar a sua adesão à luta de libertação nacional. No Mindelo, disfarçando de estudante, Abílio conseguiu formar à sua volta um grupo conhecido por 3º Ciclo, o qual não foi senão um pretexto para encobrir a mobilização dos jovens estudantes e trabalhadores para a causa da luta. Através do 3º Ciclo, foram mobilizados vários estudantes e trabalhadores. Quando Abílio teve de abandonar Cabo verde, devido às perseguições que lhe foram movidas, deixou sementes de nacionalismo em chão fértil e mais tarde, jovens que ele mobilizara integrariam a luta armada, enquanto outros participavam na luta política clandestina em Lisboa, Coimbra e na emigração. Houve uma adesão em massa de estudantes, passando muitos deles a serem referenciados pela P.I.D.E. para fugir às sevícias, e com o propósito de dar o seu contributo muitos fugiram para se juntarem a outros cabo-verdianos que já estavam no quadro do processo de luta armada. Depois de São Vicente, as acções de mobilização foram alargados às outras ilhas como Santiago e Santo Antão. c) O início e o desenvolvimento da luta armada Antes do início da luta armada, os dirigentes do PAIGC tentaram negociar a independência da Guiné e Cabo verde., através de memorandos, notas abertas e mensagens enviadas ao governo de Salazar. Não mostrando o Estado Português receptivo ao diálogo, de modo a encontrar uma saída politica no que se refere à independência da Guiné e Cabo verde, o P.A.I.G.C. deu início à luta armada na Guiné-Bissau, no dia 23 de Janeiro de 1963, com o ataque à caserna de Tite. Nos primeiros anos da luta armada a situação era muito difícil, pois os guerrilheiros eram obrigados a combater descalços sem fardamento e com armas obsoletas. Mas, com o passar do tempo começaram a surgir apoios de vária ordem de países e povos amigos como por exemplo da Ex União Soviética, Cuba, ex RDA, China, Argélia e muitos outros. Assim, em pouco tempo, o movimento conseguiu resultados satisfatórios, passando a dominar várias zonas da Guiné-Bissau. Em 1964, ocorreu a batalha de Como, a maior derrota do exército colonial na Guiné-Bissau, com seiscentos e cinqüenta mortos entre as Forças Armadas Portuguesas. Esse episódio causou um sério revés militar e psicológico para o colonialismo português e um grande alento para o PAIGC. As ilhas de Como foram as primeiras parcelas do território totalmente libertadas pelos guerrilheiros. Nessa altura, foi realizado o primeiro Congresso do partido, que decidiu criar órgãos de administração e um sistema de assistência nas regiões libertadas, além das forças armadas revolucionárias do povo (Exército, Guerrilha, e Milícia Popular) e de um Conselho de Guerra. Ao fim de 1966, 60% do território guineense encontrava-se liberto. Apesar de todo aparato militar português, o PAIGC conseguiu a libertação de várias regiões da Guiné-Bissau, assumindo o controle dessas áreas. Em 1967, inaugurou a Rádio Libertação e, em 1968, tomou o campo fortificado de Madina-Boé, concluindo a libertação da região do Boé. Para contornar a situação e enfraquecer a crescente força política e militar do PAIGC, o general Spínola, nomeado governador da Guiné em 1968, adoptou a política designada de “Guiné Melhor”, que se definia por um conjunto de medidas sociais e económicas com vista à melhoria do bem-estar da população guineense. A intenção era conquistar a simpatia e o apoio da população na luta contra o PAIGC, já que este gozava de um amplo apoio das massas populares. Além disso, o novo governador, disfarçadamente, prometeu reformas políticas e fez apelos ao PAICG para o diálogo. Concomitantemente, imprimiu mais força e intensidade às acções militares das suas tropas contra o PAIGC. Apesar disso, o PAIGC conseguiu travar a política de propaganda mentirosa do governo português através da mobilização da população. Ao mesmo tempo, respondeu à acção psicológica com a intensificação dos ataques, alguns dos quais dirigidos contra o aeroporto de Bissalanca, na capital. A partir de então, o governo colonial português deparou-se com uma situação delicada e angustiante: a impossibilidade de ganhar a Guerra da Guiné. Assim, e num acto de desespero, a força política e militar portuguesa procurou se infiltrar na estrutura do PAIGC, na mira de eliminar fisicamente o seu líder-dirigente, Amílcar Cabral. Assim, no dia 20 de Janeiro 1973, Amílcar Cabral foi assassinado em Conacri, um acto que, segundo relatos, contou com a conivência da PIDE e a participação de alguns membros do próprio Partido. Os colonialistas portugueses calculavam que, matando Amílcar Cabral, semeariam o pânico no PAIGC, minariam a capacidade do povo da Guiné-Bissau de continuar a luta armada. Mas, enganaram-se redondamente. Com a morte de Amílcar as forças armadas do PAIGC intensificaram os ataques ao inimigo. De março a setembro de 1973, a defesa antiaérea do PAIGC abateu mais de 40 aviões inimigos. Destruíram várias guarnições portuguesas e libertaram novas áreas Após dezassete anos de luta, o PAIGC viria a proclamar a independência da Guiné-Bissau a 24 de Setembro de 1973, que se propôs como Estado soberano, republicano, democrático, anti-colonialista e anti-imperialista. Relativamente a Cabo Verde a ascensão do país à categoria de Estado soberano só veio acontecer dois anos mais tarde, isto é, a 5 de Julho de 1975. Durante esta trajectória da luta de libertação, a polícia política portuguesa perseguiu, prendeu, torturou e até assassinou várias pessoas que tinham aderido ao movimento de luta de libertação nacional. Muitos foram parar no campo de concentração do Tarrafal, criado em 1936 para silenciar todos aqueles que se opunham ao regime de António Oliveira Salazar. d) Perspectivas da luta armada em Cabo Verde Em Julho de 1963, num encontro entre os membros do Partido, cogitou-se a possibilidade do desenvolvimento da luta armada em Cabo Verde. Nesse sentido, foram intensificadas as acções de mobilização nas ilhas, principalmente em Santiago, S. Vicente e Santo Antão. Por conseguinte, a vigilância e a repressão da PIDE aumentaram-se. Em 1968, os principais dirigentes das células clandestinas do Partido foram presos. Porém, isso despertou ainda mais a consciência dos cabo-verdianos da sua condição de subjugados em que se encontravam e da necessidade de lutarem pela independência. Assim, a estrutura clandestina do Partido foi reestruturado e as células clandestinas foram unificadas. A partir de então, reiterou-se a ideia de desencadear a luta armada em Cabo Verde. Foi montado um plano de desembarque de guerrilheiros em Cabo Verde para o arranque do conflito armado. Porém, esse intento foi abortado, pois a PIDE teve conhecimento atempadamente sobre o plano e conseguiu prender os integrantes do navio que pretendiam desembarcar em Cabo Verde. Os implicados no caso foram encarcerados no Campo de Concentração do Tarrafal. Com isso, a ideia de realizar a luta armada em Cabo Verde foi adiada, tendo sido arquivada posteriormente. Apesar de as circunstâncias várias e de as características geográficas de Cabo Verde não terem permitido que aí se realizasse a luta armada, a grande mobilização efectuada pelos militantes da clandestinidade teve um papel importantíssimo na luta pela independência nacional. Muitos cabo-verdianos aderiram ao movimento de libertação nacional. Uns até integraram as fileiras militares do Partido, actuando nas matas da Guiné como guerrilheiros na luta contra as tropas coloniais. 3) A proclamação da República da Guiné-Bissau No dia 24 de setembro de 1973, na região de Madina do Boé, reuniu-se pela primeira vez a Assembleia Nacional Popular (ANP), constituída por 120 membros representantes e sob a presidência de Nino Vieira. A ANP proclamou a formação do Estado, isto é, proclamou solenemente a independência da nova República da Guiné-Bissau. Em seguida, aprovou a primeira constituição histórica do país (que continha 20 artigos) e criou os órgãos do poder executivo. Luís Cabral foi eleito presidente da República e Francisco Mendes escolhido como Primeiro-Ministro. A proclamação do estado da Guiné-Bissau contribuiu para um maior isolamento do Governo de Lisboa na comunidade internacional. Assim, em consequência da proclamação da independência do povo guineense, a OUA admitiu o Estado da Guiné-Bissau na organização continental a 19 de Novembro de 1973 e ao mesmo tempo condenou a ocupação ilegal de parte do seu território por Portugal. Em novembro, as Nações Unidas, que tinha já reconhecido o PAIGC como “o único e autêntico representante do povo da Guiné”, convidaram Portugal a pôr termo à sua “ocupação ilegal” na recém-República da Guiné e a retirar imediatamente as suas tropas. Foi um duro golpe contra o colonialismo português. A independência da Guiné-Bissau sinalizava às outras colónias a possibilidade de vitória na guerra e a conquista da independência, e influenciou, decisivamente, o processo de descolonização das outras colónias”. Foi fundamentalmente na Guiné-Bissau, e através sobretudo da acção do PAIGC, que se forjou a unidade de forças que acabaram por conduzir à Revolução de 25 de Abril de 1974, que derrubou o regime colonial, facilitando as condições de acesso rápido à independência das restantes colónias portuguesas em África. 4) A Revolução de 25 de Abril e o seu impacto em Cabo Verde No início da década de 1970, a situação económica de Portugal reflectia o esforço de mais de uma década de guerra. A crise mundial agravou ainda mais esta situação: a inflação subiu, o escudo começou a desvalorizar-se e o custo de vida a aumentar. O descontentamento popular acentuou-se, ao mesmo tempo que as forças oposicionistas intensificavam a contestação ao regime, reclamando o fim da guerra colonial. Nesse contexto, surgiu, em 1973, um movimento clandestino em que participaram muitos oficiais das Forças Armadas, sobretudo capitães – foi o Movimento das Forças Armadas (MFA). Esse movimento decidiu preparar um golpe de Estado para derrubar o regime ditatorial e pôr fim à guerra colonial. Assim, no dia 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas depôs o regime ditatorial e instaurou a democracia. A massa popular aderiu espontaneamente saudando os militares com cravos vermelhos, que se tornaram o símbolo da revolução. Deposto o regime, o Movimento das Forças Armadas nomeia a Junta de Salvação Nacional para governar, presidida por António de Spínola e composta por mais seis elementos das Forças Armadas. Após a realização de um conjunto de medidas, foi constituído um Governo Provisório. As tarefas prioritárias do Governo provisório eram a democratização da sociedade portuguesa e o início de conversações com vista à independência das colónias. Considerava-se que a solução da questão colonial deveria ser política e não militar. Deste modo, a descolonização foi efectuada através de negociações com os representantes dos movimentos de libertação. Em Cabo Verde, o dia 25 de Abril de 1974 quase que passou despercebido. Mesmo no seio das pessoas politicamente mais esclarecidas havia muita reserva dada a ambiguidade da notícia do golpe. A notícia da revolução metropolitana fez eco na imprensa cabo-verdiana no jornal o arquipélago, no seu suplemento de 27 de Abril, onde publica a mensagem da junta de salvação nacional e o programa do movimento das forças armadas. Só no dia 30 de Abril é que o povo despertou da sua habitual sonolência dando “viva ao P.A.I.G.C”, “viva a independência” sem a clara noção do que aquilo significava. Segundo relatos, o 25 de Abril apanhou em Cabo Verde os dirigentes do P.A.I.G.C de imprevistos com as células desse partido a atravessarem um dos seus períodos mais difícil. A primeira aclamação, quase espontânea verificou se no dia 1 de Maio. Em Santiago a movimentação politica, verificou-se a volta da libertação dos presos políticos do campo de concentração do Tarrafal. Esse acontecimento fez juntar uma enorme multidão à frente da Cadeia. Sobre o que sucedeu no Mindelo, relata o jornal Arquipélago: “os manifestantes, partindo da praça em frente de um antigo edifício do liceu e empunhando cartazes onde se liam “viva a liberdade!”, “viva o General Spínola!”, “fora a P.I.D.E/D.G.S!”, dirigiram-se ao comando naval de Cabo Verde, tendo-se, em seguida, deslocado à Praça Estrela onde, num dos mastros do coreto, foi hasteada a Bandeira Nacional com a fotografia de Amílcar Cabral. A par dessas movimentações políticas populares, os partidos políticos começaram a emergir da clandestinidade: é o caso do P.A.I.G.C e da U.P.I.C.V (União do povo das Ilhas de Cabo Verde) e um novo partido político apareceu também na cena politica cabo-verdiana; a U.D.C (União Democrática Cabo-verdiana). Entre essas três forças políticas vai se verificar um amplo combate político, como teremos a oportunidade de ver mais à frente. 5) O protocolo de Argel A primeira ronda negocial iniciou em Dakar. Após duas horas de negociação na residência do Primeiro-ministro Senegalês as partes (representantes do governo português e do PAIGC) acordaram encontrar-se novamente a 25 de Maio. O local escolhido por iniciativa portuguesa foi Londres, relativamente aos assuntos a serem debatidos não ficou nada acordado. Nessa conversação realizada em Dakar, as autoridades portuguesas reconheceram o P.A.I.G.C como único movimento de libertação da Guiné. Em Londres a primeira secção de trabalho iniciou no dia 25 de Maio e demorou cerca de duas horas. Na secção de 26 de Maio o que foi transmitido aos jornalistas foi a ideia de que as negociações decorriam com normalidade. Porém, a uma certa altura as negociações entraram no seu impasse. As questões litigiosas eram as seguintes: – O futuro das colónias: Spínola queria formar uma comunidade lusíada em moldes federativos. O projecto do P.A.I.G.C era completamente outro; – Cabo Verde: o P.A.I.G.C exigia que o governo português reconhecesse o seu direito à independência. O P.A.I.G.C aceitou pôr Cabo Verde de fora. O argumento utilizado por Portugal foi a inexistência do conflito armado no território. A última ronda negocial decorreu-se em Argel. O P.A.I.G.C continuava a pretender a resolução conjunta dos casos da Guiné e Cabo Verde (ideia que se depreende da própria nomenclatura do partido). Portugal permanecia na valorização do cessar-fogo em detrimento do caso de Cabo Verde. O Acordo era finalmente assinado a 26 de Agosto de 1974. Nas cláusulas do acordo, foi estipulado para 10 de Setembro o reconhecimento de júri da república da Guiné-Bissau. Relativamente a Cabo Verde, os representantes do governo português reconheceram o direito do povo de cabo Verde a autodeterminação e independência e garantiram a efectivação desse direito de acordo com as resoluções pertinentes das nações Unidas, tendo também em conta a vontade expressa da organização da unidade africana. Assinaram também, um anexo onde se tratava, especificamente da questão militar. O local da assinatura foi o palácio do povo (Argel) e contou com a presença de altos representantes de Argélia. O Acordo de Argel constituiu um facto histórico no processo da descolonização pois foi a primeira forma de aplicação por Portugal de direito a autodeterminação o que já tinha sido reconhecido através da lei7/74. 6) Luta política de hegemonia do PAIGC Após a Revolução de 25 de Abril de 1974, coexistiam três forças políticas em Cabo Verde: – O PAIGC (fundado em 1956); – A U.P.I.C.V – União do povo das Ilhas de Cabo Verde (fundado em 1959); – A U.D.C – União Democrática Cabo-verdiana (fundado 1m 1974) De Abril a Dezembro de 1974, essas três forças políticas protagonizaram uma intensa disputa política, tendo cada um procurado divulgar os seus ideais e assim reforçar a sua implantação popular em Cabo Verde. A disputa gerou em torno de três questões: – A independência total e imediata tendo por base a unidade Guiné e Cabo Verde, defendida pelo P.A.I.G.C; – A independência total sem a unidade com a Guiné -Bissau, defendida pela U.P.I.C.V; – A criação de uma federação com Portugal, defendida pela U.D.C. Os três partidos desenvolveram diversas acções tanto junto da população quanto do Governo de Lisboa, com o intuito de obter força e protagonismo necessário para influenciar, quiçá determinar, o desenrolar do processo das negociações para a independência de Cabo Verde e participar na formação do futuro governo. Entretanto, com as mudanças políticas ocorridas em Portugal, que conduziram à queda do general Spínola, o clima de confrontação política entre as forças políticas em Cabo Verde alterou completamente. A solução federal desapareceu do discurso político e a U.P.I.C.V e a U.D.C foram sorrateiramente retirados do jogo político (vários militantes dessas duas forças políticas foram encarcerados no Campo de Concentração de Tarrafal), isso graças à aproximação entre o P.A.I.G.C e o M.F.A, cujo efeito parece ter facilitado o jogo político a favor do P.A.I.G.C. Assim, decapitadas as outras forças políticas com o apoio do M.F.A, o P.A.I.G.C e o Governo Português sentiram se livres de qualquer empecilho no processo negocial. 7) O processo de transição Uma série de encontros entre o P.A.I.G.C e o Governo Português iniciada desde o mês de Outubro levou a uma assinatura de um Acordo em Lisboa (18 de Setembro de 1974), em que estabelecia uma calendarização para o processo da descolonização de Cabo Verde. O referido acordo (composto por 19 artigos) propunha, entre outros: a criação de um governo de transição, a composição do governo de transição, a eleição de uma assembleia representativa do povo de Cabo Verde, dotada de poderes soberanos e constituintes, que terá por função declarar a independência de Cabo Verde e a data da proclamação da independência. No dia 31 de Dezembro de 1974 foi empossado o Governo de transição, cuja composição integrava cabo-verdianos e representantes portugueses. Na distribuição das pastas, Portugal ficou com os ministérios da Administração Interna, Equipamento Social e Ambiente e o PAIGC com a Justiça e Assuntos Sociais, Coordenação Económica e trabalho, Educação e Cultura. Esse governo tinha a incumbência de conduzir Cabo Verde à independência no período de seis meses. Conforme o previsto pelo protocolo de Lisboa, e feito o recenseamento eleitoral, foi realizada, a 30 de Junho de 1975, a votação dos 56 deputados à Assembleia Nacional de Cabo Verde. Sem adversários, o PAIGC foi o único partido a participar nas eleições, através de listas apresentadas formalmente por grupos de cidadãos a ele afectos. O P.A.I.G.C acabou por arrecadar 90% dos votos e eleger os 56 deputados. A Assembleia Nacional de Cabo Verde, recém-eleita, reuniu-se pela primeira vez no dia 4 de Julho de 1975, no salão da Câmara Municipal da Praia, para eleger a mesa da presidência, aprovar o texto da proclamação da independência, a Lei da Organização Política do Estado (LOPE) e ainda escolher o chefe de Estado e o primeiro-ministro. Durante a sessão, Abílio Duarte foi aclamado presidente da ANP, Aristides Pereira presidente da República e Pedro Pires primeiro-ministro. Também foi aprovada a LOPE, que deveria vigorar até à data da publicação de uma Constituição, num prazo de 90 dias. 8) A proclamação da independência de Cabo Verde A 5 de Julho de 1975, no Estádio da Várzea, foi proclamada a independência de Cabo Verde sob a égide de um partido binacional, força politica e dirigente do Estado e da Sociedade em Cabo Verde e na Guiné Bissau. Cabo Verde e Guiné ficaram atados ao atoleiro da unidade, de que só vieram a libertar-se a 14 de Dezembro de 1980.

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PORTUGAL

"Tenho muita honra em ter participado na descolonização", diz Mário Soares

O ex-Presidente português foi o primeiro a pegar na pasta dos Negócios Estrangeiros após a revolução de 25 de Abril. Em entrevista, Soares fala sobre a descolonização e faz o balanço de 40 anos de liberdade em Portugal.
Mário Soares, 89 anos, esteve na linha da frente da oposição à ditadura fascista em Portugal. Foi preso várias vezes pelo regime ditatorial e esteve exilado em São Tomé e Príncipe e em França.

Foi no exílio que Mário Soares recebeu a notícia do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974. Assim que soube o que se estava a passar, apanhou um comboio com destino a Portugal. O histórico do Partido Socialista (PS) português regressou com três ideias para o país: democratizar, desenvolver e descolonizar.

No dia em que foi empossado como ministro dos Negócios Estrangeiros do novo Governo, Mário Soares foi logo para Dacar, a capital senegalesa, para iniciar conversações com o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Na Zâmbia, Soares protagonizou, com Samora Machel, o chamado "abraço de Lusaca", nas negociações de Portugal com a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).

Mas muitos continuam a criticar a forma como Mário Soares fez a descolonização. Particularmente os portugueses que tiveram que fugir das ex-colónias, os "retornados".

Mário Soares foi detido várias vezes pela polícia política portuguesa, a PIDE
DW África: Como recebeu a notícia do 25 de Abril?

Mário Soares (MS): Estava justamente na Alemanha a convite do meu amigo Willy Brandt [ex-chanceler alemão]. Estava com a minha mulher e com mais dois camaradas meus, que eram também dirigentes do Partido Socialista.

Na véspera, falámos com o ministro das Finanças alemão [Helmut Schmidt], que tinha estado na guerra de Espanha. Ele era todo a favor de Espanha e achava que Portugal não tinha assim grande importância. Ele disse-me: "Olhe que vocês só se podem libertar da ditadura [de António Salazar e Marcello Caetano] quando houver a libertação do Franco, em Espanha". E eu disse-lhe: "Olhe que não é assim, nós somos os primeiros a libertar-nos, antes da Espanha e da Grécia", como realmente fomos. Estivemos toda a noite a discutir isso. No dia seguinte, de manhã cedo, telefona a responsável pelos partidos socialistas estrangeiros que iam lá a Alemanha. E diz: "Afinal, parece que tem razão, está-se a passar qualquer coisa em Portugal."

DW África: O 25 de Abril foi uma surpresa?
MS: Não, porque eu estava sempre à espera que houvesse uma revolução. Eu sabia que o que se estava a passar era uma coisa absurda. E cheguei a Portugal com três ideias na cabeça – muito simples, mas importantíssimas. A primeira era descolonizar, a segunda era democratizar e a terceira era desenvolver o país.

Enquanto estive [no exílio] em Paris, tinha tido muitos contactos com os africanos que lá iam, que me iam cumprimentar e diziam: "O que é que se vai passar, como é que se vai passar?" A minha primeira ideia era descolonizar. […] Sem descolonização não se passaria a nada, porque a guerra continuaria. E eu fui, de facto, a primeira pessoa que chegou a Angola e disse: "Vocês vão ser independentes!" Já era ministro dos Negócios Estrangeiros, diga-se.

DW África: Noutras entrevistas, disse que tinha em mente uma "descolonização possível". O que é que isto significava?

MS: Significava que queria chegar e ter a descolonização para parar com as guerras. E, de facto, é preciso ver que, quando cheguei, não sabia o que se ia passar. Logo no primeiro dia, o general António de Spínola [primeiro Presidente português após a revolução] acreditava que era possível manter uma espécie de acordo e fazer a paz com as colónias, ficando elas colónias. Eu disse-lhe logo que isso não tinha sentido nenhum e que tínhamos de dar a independência às colónias – sem isso nada feito. Por isso é que eu digo, descolonizar em primeiro lugar, não havia democracia possível sem isso.

Encontro de Mário Soares com Samora Machel em Lusaca, em junho de 1974
DW África: Esteve em Lusaca (Zâmbia) para negociar a independência de Moçambique. Encontrou-se com Samora Machel, da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). No início das conversações, dá a Samora Machel um abraço. Por que decidiu pôr o protocolo de lado e abraçar Samora Machel?

MS: Eu não decidi nada. Foi uma coisa completamente espontânea. O Kenneth Kaunda [ex-Presidente da Zâmbia] disse-me: "Meu caro senhor, isto vai-se passar assim: há uma grande mesa onde está, de um lado, todo o ministério, eu próprio e os embaixadores e, do outro, estão os jornalistas de todos os países do mundo. O senhor entra por um lado e o Samora entra pelo outro. Fazem uma vénia e ficam cada um no seu lugar. E eu faço um discurso." Eu pensei com os meus botões: "Este Kaunda julga que eu sou inglês, mas eu não sou inglês." Ele fazia tudo à inglesa. "Eu não sou inglês, sou português. É uma coisa muito diferente." Portugal já existia antes de existir a Inglaterra propriamente dita. E eu disse-lhe: "Está bem, sim senhor, vamos ver." E assim foi.

Entrámos os dois. E o Samora, que eu não conhecia, fez um sorriso amplo. Eu fiz um sorriso mais amplo e, sem fazermos o que queria o Kaunda, fomos ao encontro um do outro e demos um grande abraço. Foi o chamado abraço de Lusaca. Invertemos todo o protocolo e, a partir do abraço, toda a gente começou a bater palmas, jornalistas incluídos. O Kaunda nem chegou a falar.

DW África: Que repercussões teve este abraço? Porque era um abraço simbólico…

MS: Era um abraço simbólico. Mas, ao mesmo tempo, foi um abraço de um tipo que era muito hábil e muito inteligente, que era o Samora, e de eu próprio: ambos queríamos fazer a mesma coisa, que era fazer a paz através da independência.

Vídeo da entrevista a Mário Soares (Flash)

DW África: Podia ter-se evitado a guerra civil em Angola ou Moçambique se a descolonização tivesse sido feita de outra forma?

MS: Não. Ou a descolonização era feita a sério ou não. Porque o regime de Salazar não acreditava sequer que isso fosse possível. Depois, com Marcello Caetano, a emenda foi pior que o soneto, porque eles queriam fazer umas pequeninas coisas mas acabaram por não conseguir fazer nada. Eles não eram a favor da descolonização. Não percebiam a importância que tinha a descolonização feita em paz. E, realmente, eu tive dificuldades em vários países europeus. Diziam: "Mas vocês querem fazer a descolonização neste tempo?" Queremos.

Porque eu convivi com todos eles, desde o tempo em que havia uma coisa que se chamava a Casa dos Estudantes do Império. Eles traziam os melhores estudantes africanos para cá. Foi o ninho de onde saiu tudo para fazer a revolução. Os que eram de Angola queriam a independência de Angola, os de Moçambique queriam a independência de Moçambique e por aí fora. E isso apagou-se, porque todos são independentes.

DW África: Disse que o processo de descolonização foi exemplar face às condições no Portugal pós-revolução. Continuar a pensar assim?

MS: Pois foi. Houve tiros? Não houve. Houve lutas? Não houve. Houve paz? Houve. A paz é o principal. E o bom relacionamento que fica em virtude da paz.

Depois, quando houve guerras entre eles, claro que nós não podíamos tomar partido. Quando me diziam: "Você é do Savimbi!". Não sou. "Você é do MPLA!" Não sou. "O que é que você é?" Sou de Angola, sou a favor de Angola e da independência em Angola, mas não me tenho que meter nas vossas lutas. Queria era que vocês fizessem a paz entre vocês. E lutei por isso. Não foi possível.

DW África: Que balanço faz hoje da descolonização, olhando também para as dificuldades que a maior parte das ex-colónias portuguesas ainda está a enfrentar?

MS: Bem, as dificuldades resultam de várias circunstâncias… Mas a verdade é que não têm assim grandes dificuldades. Porque Angola é um país riquíssimo – tem petróleo, diamantes e muitas outras coisas por explorar. Moçambique é hoje tão rico ou mais do que Angola, porque, além de tudo, tem gás natural, também tem petróleo e, cada vez mais, está-se a ver que vai ser um país de uma riqueza enorme.
Enquanto foram colónias ninguém sabia que havia petróleo. Quando disseram ao Salazar que parecia haver petróleo em Angola, ele pôs a mão na cabeça e disse: "Que desastre maior é que nos vai suceder ainda?" Era a visão dele. Enquanto eles foram colónias ninguém se interessou pelo que eram as colónias. Queriam era extrair dinheiro de lá para trazer para cá. Mais nada.

DW África: De qualquer das formas, hoje continua muita gente a viver na pobreza…

MS: Pois continua. Mas isso é outra questão. É a questão social. Haver ou não haver dirigentes competentes. Isso agora já é com eles, não é connosco.

Ouça a entrevista a Mário Soares

DW África: Continua a ouvir críticas dos retornados?

MS: De vez em quando, os chamados "retornados" dizem… Mas, na altura, eu fui condenadíssimo por causa da descolonização. […] Os retornados nunca perceberam que foi a sorte grande que lhes saiu. Nunca perceberam isso. Vieram para Portugal em condições difíceis, é verdade. Porque se assustaram e fugiram. Chegaram a trazer automóveis; outros nem isso, não trouxeram nada. E nós arranjámos uma solução para lhes dar tudo. Demos-lhe dinheiro, casas… Fomos nós! Porque logo a seguir fui presidente do Governo e, por isso, dirigia essa questão.

[…] E eles a dizerem: "Você roubou Angola e vendeu Angola aos russos…." Tudo isso, claro, são mentiras puras. E, realmente, estou muito orgulhoso do que se fez com a descolonização. Tenho muita honra em ter participado nisso ativamente.

DW África: Olhando para trás e para os dias de hoje, Portugal tornou-se o país por que lutou, por que foi preso e por que esteve no exílio?

MS: Depois do 25 de Abril, Portugal foi um país extraordinário. Nós fizemos tudo. Entrámos na União Europeia, um grande gesto. Desenvolvemos uma política social imensa. Tivemos um serviço nacional de saúde gratuito. Houve respeito pelos sindicatos de todas as naturezas. E o diálogo social entre sindicatos e empresas para fazermos a concertação social. Tudo isso se fez. Fizemos um país que, até à crise, era um país extraordinário.

Agora, há uma crise social? Há! Há uma crise política? Há! Há uma crise moral? Há! Sobretudo moral e ética. Há uma crise sobre todos os aspetos atualmente. E isso está a destruir Portugal ou está a tentar destruir Portugal.

MAIS SOBRE ESTE ASSUNTO

O CAMPO DA MORTE LENTA

Os apregoados brandos costumes foram, entre nós, uma máscara que ocultava uma realidade de violência e de repressão.
Durante quase meio século, milhares de homens e mulheres sofreram na sua dignidade a prisão, a tortura, a deportação e o exílio.
O campo de concentração do Tarrafal, na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, permanece o símbolo dessa ignomínia, entre tantos outros locais em que a liberdade e, muitas vezes, a própria vida, foram arrancadas aos homens e mulheres que se bateram por um futuro melhor.
Campo da morte lenta, aí estiveram encarcerados, entre 1936 e 1954, 357 anti-fascistas, na sua maioria portugueses e, depois da sua reabertura em 1961, aí estiveram aprisionados 227 nacionalistas das ex-colónias de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.
No campo de concentração do Tarrafal, morreram 36 companheiros, além dos que vieram a sofrer toda a vida das enfermidades lá contraídas.
Coonstruído de acordo com os ensinamentos dos campos de concentração da Itália fascista e da Alemanha nazi, o Tarrafal resultou de uma ordem directa do ditador Salazar e sempre funcionou na dependência da polícia política, a PVDE/PIDE/DGS.
Hoje, quando se assiste ao negacionismo dos crimes cometidos por esse regime e pelos seus dirigentes e executores, importa recordar o que foi esse local de aniquilamento de tantos patriotas, prestando homenagem aos que aí tombaram.

Memórias do Campo da Morte Lenta
Chamavam-lhe "o Campo da Morte Lenta". Os críticos, naturalmente. Que as autoridades, essas, chamaram-lhe primeiro, entre 1936 e 1954, quando os presos eram portugueses, "Colónia Penal de Cabo Verde" e, depois, quando reabriu em 1961 para nele serem internados os militantes anticolonialistas de Angola, Cabo Verde e Guiné, "Campo de Trabalho de Chão Bom".
Trinta e dois portugueses, dois angolanos, dois guineenses perderam ali a vida. Outros morreram já depois de libertados, mas ainda em consequência do que ali tinham passado. Famílias houve que, sem nada saberem do destino dos presos, os deram como mortos e chegaram a celebrar cerimónias funebres.
"Ali é só deixar de pensar. Porque, se não, morre aqui de pensamentos. É só deixar, pronto. Os que têm vida ficam com vida. Nós aqui estamos já quase mortos." A frase é do angolano Joel Pessoa, preso em 1969 e libertado, com todos os outros presos do campo, em 1 de Maio de 1974."

Trailer - Tarrafal - um Campo em Morte Lenta

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