DESCOLONIZAÇÃO









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Catarina Fernandes Martins lowres  cfmartins@observador.pt
Quando, no dia 11 de setembro de 2001, deixei de conseguir olhar para o televisor porque a História estava a acontecer e eu estava a quilómetros de distância, percebi que ia ser jornalista. Licenciei-me em Jornalismo pela ESCS e estagiei no Público, onde pude fazer aquilo de que mais gosto: reportagem. Fui descobrindo que não é só a História que me encanta, mas todas as histórias. Aquelas que “contamos a nós próprios para viver”.


DESCOLONIZAÇÃO

O dia em que Spínola anunciou a descolonização

No dia 27 de julho de 1974, o general António de Spínola anunciou ao país que tinha início o processo de descolonização e garantiu que não havia nada a recear.

Spínola dirigiu-se aos portugueses faz hoje 40 anos para anunciar a descolonização
Arquivo T&Q
Há 40  anos, o general António de Spínola dirigia-se ao “povo português de aquém e além-mar” para, “com a mais viva emoção”, reconhecer o direito das colónias à auto-determinação e independência.
Para Spínola, o anúncio da descolonização correspondeu a uma “hora grande na vida e na história de um Povo” ao permitir o “reencontro” do país “com a vocação, a fisionomia e a forma de ser e de estar no mundo que lhe são próprias”. Até porque Portugal, disse o general no discurso, não foi “um povo de vocação imperialista”.
Nessa hora grande, Spínola declarou que havia “chegado o momento de reconhecer às populações dos nossos territórios ultramarinos o direito de tomarem em suas mãos os próprios destinos, concretizando-se, desse modo, o desenvolvimento da política de autenticidade que sempre defendemos”.
Ao longo do discurso, o general Spínola refere o “sofrimento” vivido durante os 13 anos da guerra colonial , dizendo que o esforço militar que no início procurou “evitar o genocídio e criar as conduções para uma solução política”, acabou por “perder todo o sentido”.
Depois de reconhecer que essa guerra conduziu a “posições de irreconciliação, que estão na base do ambiente de desconfiança criado”, Spínola anuncia por fim a lei constitucional nº7/74, promulgada na véspera e que dá início ao processo de descolonização.
“Assim, e na mais perfeita coerência com a linha de ação do meu governo na Guiné, chegou o momento de o Presidente da República reiterar solenemente o reconhecimento do direito dos povos dos territórios ultramarinos portugueses à autodeterminação, incluindo o imediato reconhecimento do seu direito à independência”, disse o general.
No final do discurso, Spínola dirige-se aqueles que “sonharam, honestamente, com uma África lusa” para lhes dizer que “nada terão a recear” pois “as autoridades dos novos países honrarão o sentido de justiça decorrente do seu estatuto de nações plurirraciais de expressão portuguesa”.
António de Spínola, antigo governador da Guiné e primeiro Presidente da República não eleito, após o 25 de abril de 1974, defendia um projeto de descolonização diferente daquele pretendido pelo MFA e falou várias vezes da possibilidade de consultar a população dos territórios coloniais. O plano do general passava por um processo de independência faseado em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau, que poderia durar cinco anos.
















HelenaMatos
A descolonização portuguesa não tem autores. Ninguém assume a sua paternidade. E como nos explica Helena Matos neste ensaio, ela já era irreversível em Junho de 1974, uma altura de falsa tranquilidade
A resposta a esta pergunta é simples: ninguém. No início a descolonização foi vista como a página dourada onde homens como Spínola, Soares e Almeida Santos sonhavam inscrever no topo o seu nome. Depois tornou-se no facto cuja autoria ninguém reivindica e cuja responsabilidade todos enjeitam. E contudo desde os primeiros momentos que estavam reunidos os elementos para que a descolonização fosse uma tragédia mais que anunciada.
Como sempre sucede com as tragédias não faltam a posterioridatas nem factos que podem ser apresentados como o momento central desse torvelinho de acontecimentos que isoladamente não se podem considerar muito graves, mas que adicionados se exponenciam até gerar o desastre.
É claro que os sinais estão lá desde essa noite de 25 para 26 de Abril de 1974 quando no quartel da Pontinha se torna evidente, após horas e horas de reunião, que a estratégia a seguir no Ultramar divide a Junta de Salvação Nacional e a Comissão Coordenadora do MFA: a transformação da PIDE/DGS em serviço de informações militares nos territórios ultramarinos e a manutenção dos secretários-gerais dos diversos territórios até à nomeação de novos Governadores pelo Governo Provisório contam-se entre os principais pontos de discórdia.

Depois da leitura desta declaração à 1h 30m do dia 26 de Abril os homens da JSN voltam à Pontinha para continuar a discussão com a Coordenadora do MFA. Até às 8h vão continuar sentados à mesa.
A Assembleia do MFA de 8 de Junho terá começado de forma atribulada pois, como recorda Sanches Osório, o então coronel Vasco Gonçalves, membro da Coordenadora do MFA, mandou sair da sala os militares que não pertencessem ao MFA. Ora era impossível apurar quem pertencia ou não ao MFA.
Mas foi a 8 de Junho de 1974 que se tornou num facto aquilo que não era mais que um presságio: reunidos em plenário na Manutenção Militar, os oficiais decidem o cessar-fogo imediato no Ultramar. Se se perguntar quem deu a ordem para o cessar-fogo rapidamente se constata que a resposta, como nas tragédias, é “Ninguém”. Mas tal como na Odisseiaou no Frei Luís de Sousa não se percebe a história sem se perceber o que fez “Ninguém”.
A Assembleia do MFA de 8 de Junho terá começado de forma atribulada pois, como recorda Sanches Osório, o então coronel Vasco Gonçalves, membro da Coordenadora do MFA, mandou sair da sala os militares que não pertencessem ao MFA. Ora era impossível apurar quem pertencia ou não ao MFA. Nesta fase, Junho de 1974, pode dizer-se que todos os militares pertenciam ao MFA pois pouco mais de uma semana antes, a 24 de Maio, o General Costa Gomes, na qualidade de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), determinara por decreto que todos os oficiais, sargentos e praças passassem a considerar-se incluídos no MFA. Desagradados com o decorrer dos trabalhos, vários militares abandonaram a reunião, não estando assim presentes quando, segundo Sanches Osório, se decidiu “o cessar-fogo imediato no Ultramar”.
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Spínola numa capa do Diário de Lisboa
Costa Gomes, outro dos militares presentes nessa Assembleia e que pela sua patente de general e cargo de CEMGFA certamente teria uma palavra a dizer em tão importante decisão, também terá saído antes de ela ser discutida: “Não tenho ideia dessa decisão, embora deva dizer que não estive até ao fim do plenário.” – declarou a Maria Manuela Cruzeiro.
O general considera que do ponto de vista militar “uma ordem dessas nunca poderia ser dada, já que, a concretizar-se, expunha as unidades a uma posição de inferioridade perante um eventual ataque do adversário”.
O cessar-fogo tornou-se rapidamente num facto militarmente consumado tanto mais que no terreno, fosse determinado pelos comandos ou resultado do voluntarismo de alguns oficiais, as tropas portuguesas entendiam que ele vigorava.
Seja como for essa ordem foi aprovada a 8 de Junho de 1974 numa Assembleia da qual sempre se gostou mais de destacar o desprendimento material subjacente ao facto de os oficiais terem recusado as graduações que Spínola lhes propôs (como explicaria Melo Antunes os oficiais presentes teriam visto nessa proposta “a manobra clássica de tentar manipular as pessoas através de benesses”) do que a decisão do cessar-fogo imediato.
Mas independentemente do quando, do como e do por quem foi decidido o cessar-fogo ele tornou-se rapidamente num facto militarmente consumado tanto mais que no terreno, em África, fosse determinado pelos comandos ou resultado do voluntarismo de alguns oficiais, as tropas portuguesas entendiam que o cessar-fogo vigorava.
Desta atitude resultou uma irreversível posição de inferioridade para as Forças Armadas Portuguesas, com consequências por vezes trágicas para os próprios militares como sucedeu em Maio de 1974 em Bambandinca, no centro-sudeste da Guiné, com uma patrulha motorizada cujo comandante, o tenente-coronel Luís Ataíde Banazol, resolveu contactar directamente o PAIGC. Naturalmente o PAIGC desconfiou desta iniciativa e a companhia caiu numa emboscada da qual resultaram dois mortos e dezoito feridos, dois dos quais ficaram mutilados. Da generalização desta atitude resultou também e sobretudo a ausência de protecção para os civis. Mas em Junho de 1974 ninguém ponderava os riscos a que iam ser expostas as populações civis de África e quando tal acontecia era simplesmente para os desvalorizar.
A 11 de Junho de 1974 nenhum dos homens que enche o Palácio de Belém para assistir à posse dos novos governadores de Angola e Moçambique está tranquilo e muito menos era capaz de garantir a tranquilidade àqueles que viviam nos territórios africanos. A começar pelo próprio general Spínola

11 de Junho de 1974: nenhum estava tranquilo

Este cessar-fogo decidido não se sabe por quem é um dos factos que concorre para que soem mais a esconjuro do que a uma afirmação as sucessivas garantias de tranquilidade dadas por Spínola durante a cerimónia em que deu posse a Silvino Silvério Marques e Henrique Soares de Melo, como novos governadores de Angola e Moçambique.
Quatro vezes repetiu Spínola que poderiam estar tranquilos europeus e africanos pois todos “serão chamados, sem excepção, a dar o seu voto”.
Mas a 11 de Junho de 1974 nenhum dos homens que enche o Palácio de Belém para assistir à posse dos novos governadores de Angola e Moçambique está tranquilo e muito menos era capaz de garantir a tranquilidade àqueles que viviam nos territórios africanos. A começar pelo próprio general Spínola.

António de Spínola: da guerra para a política

Spínola vê o país mudar: são as greves, os saneamentos, as reivindicações e os jornais cheios de anúncios em que comerciantes, vendedores e caixeiros-viajantes invocam certificados passados pela Junta de Salvação Nacional ou por notáveis locais para negarem ter pertencido à PIDE ou à Legião Portuguesa.
Capa da revista brasileira Manchete pouco depois do 25 de Abril
Capa da revista brasileira Manchete pouco depois do 25 de Abril
Em Junho de 1974 o general não se reconhece no país de que se tornara Presidente da República há menos de um mês. Mas mais inquietantemente ainda Spínola não reconhece nem se reconhece nessas Forças Armadas que deixam crescer ainda mais o cabelo e a barba, banalizam o “pá”, trocam o Regulamento de Disciplina Militar pelos plenários e aos desfiles preferem as assembleias. Cada vez mais aqueles soldados que ele define como “melhores entre os melhores” parecem arredios à ordem castrense que o general tanto gosta de exaltar naquele seu português gongórico. Um vocabulário que, em meados de Junho de 1974, começava a parecer tão exótico e deslocado quanto aquele monóculo que Spínola fazia questão de usar num país em que a administração dos TLP se sentia obrigada a afirmar publicamente no Diário Popular a 5 de Maio de 1974 que durante as horas de serviço “As telefonistas não foram proibidas de cozinhar para os fuzileiros”.
Depois foram essas comemorações do 10 de Junho atrás das paredes de um quartel – a Base Aérea da Ota – e não no cenário majestoso do Terreiro do Paço, pois a tal obrigara o receio da associação entre o regime deposto e as cerimónias de condecorações aos militares que habitualmente tinham lugar neste dia.
A cada dia, quando não a cada hora, se lhe arreiga o pressentimento mais do que o conhecimento de que é precisamente em torno desses “africanos” e “europeus” a quem ele, Spínola, acaba de garantir a tranquilidade, que ameaçam tornar-se insanáveis as suas divergências com os homens da Coordenadora do MFA. Um dos primeiros momentos em que essas divergências afloraram publicamente foi a propósito do destino do capitão Peralta (ver caixa 1), um militar cubano capturado na Guiné em Novembro de 1969 que os membros da Coordenadora queriam libertar imediatamente, abdicando do que Spínola considerava um trunfo importante em negociações futuras com o PAIGC. Depois foram essas comemorações do 10 de Junho atrás das paredes de um quartel – a Base Aérea da Ota – e não no cenário majestoso do Terreiro do Paço, pois a tal obrigara o receio da associação entre o regime deposto e as cerimónias de condecorações aos militares que habitualmente tinham lugar neste dia. A 11 de Junho de 1974 Spínola está longe de ser um homem tranquilo.
Pouco tranquilos estariam também Silvino Silvério Marques e Henrique Soares de Melo enquanto o Presidente da República lhes dá posse respectivamente como Governador-Geral de Angola e Governador-Geral de Moçambique.

Silvino Silvério Marques: Lisboa não lhe vai responder

Silvino Silvério Marques sabe que a declaração do Presidente da República – “A todos garantiremos que nessa hora grande serão chamados, sem excepção, a dar o seu voto” – está longe de ser consensual não tanto entre os mais de quarenta partidos e grupos políticos entretanto constituídos em Angola mas sobretudo para o MPLA e para a FNLA. Esta última, liderada por Holden Roberto, destaca-se por exigir independência imediata sob risco de serem expulsos todos os portugueses de Angola e ameaça em declarações que faz na capital do Zaire, Kinshasa: “Não restará sequer uma peça de mobiliário que se possa aproveitar”.
Também o MPLA considera que o referendo não é uma solução para o povo angolano. Agostinho Neto numa entrevista dada ao semanário Expresso, em Londres onde Neto participara numa celebração do 1º de Maio com portugueses até então aí exilados, defende que a independência implica um “tempo de preparação” que deve ser controlado pelos angolanos e muito particularmente pelo seu movimento.
Silvino Silvério Marques (segundo a contar da esquerda)
Silvino Silvério Marques (segundo a contar da esquerda)
É certo que estas declarações são apenas isso – declarações – pois por esta época o Exército português controlava militarmente todo o território angolano. Mas também é verdade que ao anúncio de suspensão pelo Comando Militar de Angola, no final de Maio, das operações militares ofensivas e ao apelo das autoridades portuguesas para que as guerrilhas independentistas angolanas aceitassem um cessar-fogo, tanto a UNITA como a FNLA e o MPLA tinham respondido atacando: um dos ataques mais graves do pós-25 de Abril é levado a cabo pela UNITA que monta uma emboscada a um grupo de combate das Forças Armadas Portuguesas causando-lhe várias mortes.
Em resumo, os movimentos armados em Angola podiam não ter em Junho de 1974 grande capacidade operacional mas sabiam o suficiente de táctica para não desperdiçar a oportunidade que lhes fora oferecida pela forma desastrada como as autoridades portuguesas tinham lançado o cessar-fogo: quanto mais atacassem nessa fase, mais peso teriam nas futuras negociações sobre o destino daquele território. Que o fizessem não espanta. O que não se compreende é que entre os militares e políticos portugueses houvesse quem se mostrasse surpreendido com isso.
Mas para Silvino Silvério Marques o mais preocupante é o que não sabe e só vai descobrir uma vez em Luanda: Costa Gomes, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, retirara ao governador-geral de Angola competência sobre a PSP e a Organização Provincial de Voluntários de Defesa Civil. Ou seja, os seus poderes tinham sido diminuídos sem que o soubesse
Não sendo propriamente nenhum destes factos uma boa notícia, também não era por enquanto necessariamente sinónimo de catástrofe pois o poder destes movimentos era, em meados de 1974, muito mais mediático do que real. Por isso, ao militar que Silvino Silvério Marques era causaria provavelmente maior inquietação o facto de em Angola circular desde o fim de Maio de 1974 um abaixo-assinado subscrito por oficiais, sargentos e praças que por essa pública e notória via afirmavam a sua recusa de entrar em combate. E sobretudo Silvino Silvério Marques ficaria bem menos tranquilo se conseguisse avaliar, a 11 de Junho, as consequências futuras para Angola não apenas dos jogos que então se travavam nos bastidores, mas também da leviana e desorientada política de diplomacia paralela (ver caixa 2)feita por pessoas que não tinham qualquer experiência política e que, como salienta um dos militares que por esta época integrava uma das equipas de negociadores, Manuel Monge, nem contavam com o apoio dos diplomatas de carreira.
Mas para Silvino Silvério Marques o mais preocupante é mesmo o que não sabe e só vai descobrir uma vez em Luanda: o general Costa Gomes, Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (que desempenhara um papel crucial nas manobras que levaram a que tendo sido Silvino Silvério Marques inicialmente convidado para o lugar de Governador-Geral e Comandante-Chefe de Moçambique fosse em seguida desconvidado) assinara um despacho que retirara ao Governador-geral de Angola competência sobre a PSP e a Organização Provincial de Voluntários de Defesa Civil. Ou seja os poderes de Silvino Silvério Marques tinham sido diminuídos sem que ele o soubesse e consequentemente diminuída estava também a sua capacidade para garantir a tranquilidade aos angolanos como bem se verá nos incidentes de Julho de 1974 nos musseques de Luanda.
No I Conselho de Defesa que convoca após chegar a Angola, Silvino Silvério Marques toma conhecimento deste despacho. Contesta-o de imediato por telegrama dirigido para Lisboa ao cuidado do ministro Almeida Santos. Mas de Lisboa nunca lhe chegará resposta a essa e às muitas outras questões com que se vai confrontar em Luanda.
Para perceber o que aconteceu é preciso recuar ao período anterior ao 25 de Abril, a esses dias do início de 1974 em que, na Beira e em Vila Pery, se gritara “Fora as Forças Armadas” e se tinham apedrejado quartéis. Ao contrário do que se possa supor, os envolvidos nestes confrontos não pertenciam à Frelimo, antes representavam a população branca dessas cidades moçambicanas.
Henrique Soares de Melo: missão quase impossível
Mas era sem dúvida Henrique Soares de Melo, advogado, membro dos Democratas de Moçambique, homem ligado aos círculos da oposição a Salazar e Caetano e agora Governador-Geral de Moçambique, quem experimentava pública fundamentação entre todos os presentes no Palácio de Belém, naquela manhã de 11 de Junho, para mais duvidar das garantias de tranquilidade que Spínola enfaticamente prodigalizara.
O que espoletara essa situação que os militares entenderam como um “enxovalho” e que politicamente era explosiva fora o assassínio pela Frelimo de Maria José da Silva Dias, mulher de um fazendeiro de Vila Manica, próxima de Vila Pery.
Vivendo e trabalhando em Moçambique, o novo Governador-Geral sabia que meses antes se tinha quebrado a confiança de parte da população branca nas Forças Armadas. Para perceber como isso aconteceu é preciso recuar um pouco ao período anterior ao 25 de Abril, mais precisamente a esses dias do início de 1974, em que na Beira e em Vila Pery (ver caixa 3) se gritara “Fora as Forças Armadas” e se tinham apedrejado quartéis. Ao contrário do que se possa supor, os envolvidos nestes confrontos não pertenciam à Frelimo e estavam longe de se enquadrar no perfil daqueles que então se definiam como terroristas. Quem se confrontou e insultou em Vila Pery e na Beira em Janeiro de 1974 foram sim os militares portugueses e grande parte da população branca dessas cidades moçambicanas.
O que espoletara essa situação que os militares entenderam como um “enxovalho” e que politicamente era explosiva fora o assassínio pela Frelimo de Maria José da Silva Dias, mulher de um fazendeiro de Vila Manica, próxima de Vila Pery.
Até então poupados pelas actividades da Frelimo, os comerciantes e fazendeiros da Beira e de Vila Pery compareceram em peso no funeral da vítima e, em sinal de luto pelo sucedido na Fazenda Águas Frescas, fecharam os seus estabelecimentos. Durante três dias manifestaram-se. Acusaram as Forças Armadas de não os defender e de terem interesses materiais na degradação da segurança, pois assim aquela região seria declarada zona de risco. Reivindicaram armas e meios para organizarem a sua autodefesa e vandalizaram a luxuosa messe, para eles símbolo da displicência dos militares.
Henrique Soares de Melo ainda se confronta com as manifestações nem sempre muito tranquilas quer contra, quer a favor, da independência, com um surto grevista nos portos, caminhos-de-ferro, fábricas e empresas agrícolas de Moçambique e com a actividade da Frelimo
Em consequência dos confrontos, oito civis e um militar, o capitão Garcia Lopes, deram entrada no hospital. A PSP, que os militares acusariam de passividade, e a Polícia Militar intervêm efectuando várias detenções entre os manifestantes, mas estes últimos conseguiriam impor a libertação dos detidos, saindo vencedores destes dias que ficarão conhecidos como Movimento da Beira. Mas esta foi uma vitória efémera pois quando, dentro de três meses, os militares fizerem um golpe em Lisboa, estes civis que em Janeiro de 1974 tinham apedrejado os capitães em Moçambique cairão inapelavelmente no lado errado da História e serão automaticamente rotulados como racistas e ultra-reaccionários.
Como se os dados sobre a má relação entre as forças de segurança e os militares e entre estes últimos e os civis não fossem suficientemente preocupantes, Henrique Soares de Melo ainda se confronta com as manifestações nem sempre muito tranquilas quer contra, quer a favor, da independência, com um surto grevista nos portos, caminhos-de-ferro, fábricas e empresas agrícolas de Moçambique e com a actividade da Frelimo – neste mesmo dia 11 de Junho os jornais de Lisboa relatam que na véspera explodira na linha férrea entre Beira e o Malawi “uma mina que fora colocada pelos guerrilheiros”.
E se desse atentado da Frelimo apenas havia a registar danos materiais, o mesmo não se podia dizer do atentado levado a cabo a 9 de Junho no distrito de Tete, no qual os guerrilheiros mataram quatro trabalhadores e feriram gravemente onze.
Mário Sores com Samora Machel em Lusaka
Mário Sores com Samora Machel em Lusaka
Mas à semelhança do que acontece com o Governador-Geral de Angola, também Henrique Soares de Melo ignora parte dos dados que os presentes nesta cerimónia lançam no tabuleiro do jogo que se vai chamar descolonização: era público que os primeiros contactos oficiais entre Portugal e a Frelimo tinham tido lugar dias antes, a 6 de Junho, em Lusaka, na Zâmbia. Menos pública fora a forma como, diante da Frelimo, se dividira a delegação portuguesa. Esta era liderada por Mário Soares, na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros. A acompanhá-lo seguiram o diplomata Manuel Sá Machado, o tenente-coronel Nuno Lousada, do MFA de Moçambique, e o major Otelo Saraiva de Carvalho.
Do improviso que rodeou a constituição das equipas de negociadores portugueses é sintomática a forma como a presença de Otelo Saraiva de Carvalho na delegação foi comunicada por Spínola a Mário Soares: no próprio dia da partida para Lusaka Spínola telefonou a Mário Soares comunicando-lhe que “os rapazes da Coordenadora” lhe tinham sugerido que Otelo Saraiva de Carvalho acompanhasse Mário Soares. Este, segundo as suas próprias palavras à jornalista Maria João Avillez, “não sabia quem era Otelo Saraiva de Carvalho”, tendo pedido ao seu chefe de gabinete que se informasse. Assim é no próprio aeroporto que Mário Soares fica a saber “que Otelo era um elemento muito importante do MFA.”
“Eu expus as minhas ideias numa linguagem aberta sem rodeios. Senti, claro, que diplomaticamente estava, como costuma dizer-se, a «espalhar-me», mas como não era capaz de falar doutra maneira, a partir de certa altura calei-me. O resultado foi que Samora Machel e os homens da Frelimo ficaram um bocado desconfiados com o Dr. Mário Soares e a mim adoraram-me..."
Otelo Saraiva de Carvalho sobre o encontro em Lusaka onde desautorizou Mário Soares à frente de Samora Machel
Em Portugal foi notícia o abraço de Mário Soares a Samora Machel e com aquela capacidade muito humana de se transformar o acessório em problema e subestimar o essencial falou-se muito desse abraço e não se analisou a reunião em si mesma. O que aconteceu? O que nunca podia ter acontecido. Ou seja a delegação portuguesa dividiu-se perante a Frelimo quando o militar que os “rapazes da Coordenadora” tinham sugerido a Spínola que acompanhasse Mário Soares desautorizou em plena reunião o ministro português:
Ao contrário do que é habitual nos relatos sobre o desenrolar das negociações da descolonização, em que os diversos protagonistas se contradizem entre si, neste caso tal não acontece. Otelo Saraiva de Carvalho confirmou várias vezes a versão de Mário Soares.
“Samora procurava argumentar que enquanto não reconhecêssemos a Frelimo como o único interlocutor e não aceitássemos o princípio da independência, não haveria nenhum cesssar-fogo. Eu, que chefiava a delegação portuguesa, respeitando as instruções de Spínola sustentava a posição contrária: antes de tudo um cessar-fogo. Depois, veríamos. Estávamos num impasse! Foi então que Otelo, voltando-se para mim, me interrompeu e disse na presença de todos: “Não insista, dr. Soares, as nossas tropas e as da Frelimo já estão a confraternizar em vários teatros de operações!”– recorda na mesma entrevista Mário Soares sobre esse encontro que oficialmente foi apresentado como tendo sido o primeiro entre Portugal e a Frelimo mas que já teria sido precedido de um outro em Amsterdão.
Ao contrário do que é habitual nos relatos sobre o desenrolar das negociações da descolonização, em que os diversos protagonistas se contradizem entre si, neste caso tal não acontece. Otelo Saraiva de Carvalho confirmou várias vezes a versão de Mário Soares, nomeadamente no livro Cinco meses mudaram Portugal: “Eu expus as minhas ideias numa linguagem aberta sem rodeios. Senti, claro, que diplomaticamente estava, como costuma dizer-se, a «espalhar-me», mas como não era capaz de falar doutra maneira, a partir de certa altura calei-me. O resultado foi que Samora Machel e os homens da Frelimo ficaram um bocado desconfiados com o Dr. Mário Soares e a mim adoraram-me… Quando chegámos a Lisboa, o Dr. Mário Soares pediu-me que fosse com ele a Belém dar contas ao general Spínola do que se passara. Mário Soares expôs o mais cautelosamente possível o problema ao general e, depois passou-me a palavra. Eu disse claramente quais as condições da descolonização e referi a posição da Frelimo que me parecia ser a única correcta e possível.”
Otelo Saraiva de Carvalho
Otelo Saraiva de Carvalho
O comportamento e o entendimento de Otelo Saraiva de Carvalho – “a posição da Frelimo que me parecia ser a única correcta e possível” – correspondia a um estado de espírito real nas Forças Armadas Portuguesas, que aliás no encontro de Amsterdão teriam, antes sequer de começarem as negociações, feito sentir à Frelimo que não rejeitavam as condições apresentadas por aquele movimento: reconhecimento do direito à independência e transferência para a Frelimo da representatividade única de todo o povo moçambicano. (1)
Em resumo, como premonitoriamente se questionava num telegrama datado de 3 de Junho de 1974, enviado do consulado norte-americano em Moçambique para o Departamento de Estado, restava saber se “uma vez iniciadas as negociações com a Frelimo, os oficiais e soldados portugueses «quereriam ou poderiam» manter os níveis de actividade suficientes para garantir o status quo existente.” Muitos não quiseram. Outros não puderam. Mas, independentemente de quem não quis ou não pôde, a verdade é que o nível e tipo de actividades dos militares portugueses em África deixou de garantir o ambiente indispensável a quaisquer negociações.
Oficialmente o encontro de Lusaka acabou num impasse, mas é óbvio que Portugal saiu manifestamente enfraquecido como negociador e a Frelimo confirmou que mais do que negociar um cessar-fogo poderia aspirar a ser aceite como única interlocutora no processo de negociações.
A isto, que não é pouco, para fazer crescer a intranquilidade do novo Governador-Geral de Moçambique havia ainda que juntar Jorge Jardim (ver caixa 3) – o mentor de um projecto independentista para Moçambique, o denominado Plano Lusaka – e que desde 21 de Maio estava refugiado na embaixada do Malawi em Lisboa mas cuja rede de influência se mantinha activa quer em Moçambique quer em Lisboa.
Conhecedor de tudo isto ou apenas de parte, Henrique Soares de Melo, neste dia 11 de Junho de 1974, terá dificuldade em considerar-se um homem tranquilo.
À posteriori Costa Gomes (tal como muitos outros protagonistas deste período) dirá que a federação era uma hipótese apenas defendida por Spínola e que a essa hipótese se opunham os milicianos, mas lendo as suas declarações de meados de 1974 o mais que se pode dizer é que até Junho desse ano quer ele, quer Spínola, defendiam publicamente o mesmo para África

Francisco Costa Gomes: sempre no momento certo

Mas independentemente da avaliação que o novo Governador-Geral de Moçambique fizesse acerca da influência que os incidentes da Beira de Janeiro de 1974 tiveram no agendar do golpe que eclodiu a 25 de Abril ou sobre o sucedido em Lusaka, um dos homens presentes nesta cerimónia, o general Francisco Costa Gomes, sabe melhor que ninguém que agora tal como em Janeiro de 1974, nem todos os colonos, brancos, africanistas, europeus, ultramarinos, residentes e metropolitanos acreditam que Lisboa lhes possa ou queira garantir a tranquilidade: semanas antes desta cerimónia de tomada de posse dos governadores-gerais de Angola e de Moçambique, Costa Gomes fora recebido na cidade da Beira por milhares de manifestantes, sobretudo brancos, que lhe pediam armas para lutarem contra a Frelimo e que se diziam traídos. Exactamente as mesmas palavras e as mesmas acusações que ouvira nessa mesma cidade quando, a 18 de Janeiro desse mesmo ano de 1974, aí estivera e que tanto o tinham irritado.
O general Costa Gomes
O general Costa Gomes
Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas em Janeiro de 1974 e novamente Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas após o 25 de Abril de 1974, Costa Gomes faz em Maio e Junho de 1974 declarações sobre o futuro de Angola e Moçambique num tom menos barroco que o de Spínola mas certamente mais didáctico, como se por momentos tivesse voltado a ser professor dos Altos Estudos Militares: “Angola e Moçambique serão multirraciais. Não se esqueça de que quando os portugueses chegaram pela primeira vez a essas regiões algumas tribos africanas que lá vivem actualmente não se encontravam nas proximidades. Eles e os africanos são irmãos e assim continuarão a ser.” – respondera, dias antes desta cerimónia, a um jornalista da revista To The Point International quando este lhe perguntava se receava ou não a repetição de um novo Congo em Angola e Moçambique.
O então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas tratou ainda de explicar que qualquer discussão sobre o futuro daqueles territórios era naquele momento, Junho de 1974, extemporânea pois tudo isso teria de ser resolvido no quadro do Parlamento que os portugueses viessem a eleger dentro de um ano. Ele, Costa Gomes, declara ainda acreditar que, numa estrutura federativa, Angola decidirá continuar portuguesa. Quanto a Moçambique considerava a situação mais complicada. Mas fosse como fosse, tudo isso teria de ser tratado pelo futuro Parlamento pois “tal assunto não era da competência da Junta de Salvação Nacional nem do Governo Provisório”.
Os milicianos, acrescenta Costa Gomes na entrevista que concede a Maria Manuela Cruzeiro duas décadas depois, “não queriam continuar a combater e a morrer numa guerra que iria acabar dentro de pouco tempo”.
Mas se deixarmos as declarações produzidas pelo Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas em Maio e Junho de 1974 e passarmos para o que Costa Gomes mais tarde dirá ter pensado nesse mesmo período constataremos que pensava precisamente o contrário daquilo que dizia: “para se fazer uma federação como o general Spínola pretendia, eram necessárias forças militares que não tínhamos.”
Os milicianos, acrescenta Costa Gomes na entrevista que concede a Maria Manuela Cruzeiro duas décadas depois, “não queriam continuar a combater e a morrer numa guerra que iria acabar dentro de pouco tempo”.
Ou seja, a posteriori Costa Gomes (tal como muitos outros protagonistas deste período) dirá que a federação era uma hipótese apenas defendida por Spínola e que a essa hipótese se opunham os milicianos, mas lendo as declarações feitas em meados de 1974 por Costa Gomes o mais que se pode dizer é que até Junho desse ano quer ele, quer Spínola defendiam publicamente o mesmo para África. A 11 de Junho de 1974 muito provavelmente nenhuma das diversas facetas de Costa Gomes tem razão para se dizer tranquila, embora o notável estratega que era tivesse razões para acreditar que uma das suas facetas faria sempre parte da narrativa vencedora.
Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial, deixa de falar de independência e não só passa a defender então com energia retórica o referendo, como é provavelmente o único responsável, entre civis e militares, que parece ter dedicado alguns minutos a reflectir sobre alguns detalhes desse processo.

Almeida Santos: o dom e a maldição da palavra

Ministro da Coordenação Interterritorial de um país que se prepara para redefinir fronteiras, Almeida Santos, ao contrário da maior parte dos políticos portugueses de então, conhece bem África: amigo pessoal de Soares de Melo, viveu e trabalhou em Moçambique e também não desconhece Angola.
Almeida Santos profere um dos discursos desta cerimónia. Não só reitera o que Spínola afirmara momentos antes como alerta para o caracter provisório, logo limitado, dos governos que Silvério Marques e Soares de Melo vão chefiar: “as grandes mutações político-militares, essas, segundo o programa do Movimento das Forças Armadas – lei constitucional do País – compete à Nação primeiro, e a cada território ultramarino depois, debatê-las e defini-las.”. Por fim desenvolve o mote que dias antes lançara em Benguela: “A vontade dos povos tem de ser um dogma para todos nós. Seja qual for essa vontade”.
Manifestação a Almeida Santos quando ele visita Díli, em 1974
Manifestação a Almeida Santos quando ele visita Díli, em 1974
Entre os que nesse dia 11 de Junho acorreram ao Palácio de Belém, Almeida Santos tem uma experiência que o transforma num protagonista especial dessa espécie de drama que decorreu em Portugal entre Abril de 1974 e Janeiro de 1975, em que cada um dos actores da descolonização parece empenhar-se em, a cada fase, dizer e defender publicamente o inverso daquilo que, pouco depois, garantirá que pensava no mais recôndito da sua consciência: menos de uma semana antes de se tornar ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida Santos publicara uma “Carta Aberta aos moçambicanos” na revista moçambicana Tempo, em que afirmava: “Ou bem que todos sabemos que a autodeterminação dos povos de Angola, Moçambique e Guiné conduz totalmente à independência ou bem que não. Se sim – e eu não vejo seriamente como sustentar a negativa – a montagem de um sistema autodeterminativo afigura-se-me redundante, logo, inútil”.
Almeida Santos declarou em Lourenço Marques, no princípio de Junho, que o referendo seria organizado dentro de um ano, em cada um dos territórios “mais ou menos baseado no princípio um homem, um voto”.
A 16 de Maio de 1974 é empossado o I Governo Provisório. Almeida Santos torna-se ministro da Coordenação Interterritorial (o sucessor do anterior ministério do Ultramar). Deixa de falar de independência e não só passa a defender então com energia retórica o referendo, como é provavelmente o único responsável, entre civis e militares, que parece ter dedicado alguns minutos a reflectir sobre alguns detalhes desse processo: segundo as declarações que Almeida Santos faz em Lourenço Marques no princípio de Junho, o referendo seria organizado dentro de um ano, em cada um dos territórios “mais ou menos baseado no princípio um homem, um voto”. Votariam os maiores de 18 anos independentemente de saberem ler e escrever.
Fosse então por falta de preparação, voluntarismo ou ingenuidade, Mário Soares e Almeida Santos ao apresentarem o fim da guerra como algo ali ao alcance imediato das boas vontades e que só não acontecera antes por causa da teimosia dos dirigentes do regime deposto, colocaram-se nas mãos dos homens com quem vão ter de negociar.

Mário Soares: à procura das independências puras e simples

Ao mesmo tempo torna-se ministro dos Negócios Estrangeiros o seu grande amigo e hoje colega de partido, Mário Soares, que logo no discurso do 1º de Maio dissera “Não queremos abandonar os Portugueses que estão em Angola, em Moçambique, no Estado de Guiné-Bissau. Pelo contrário, queremos defender as suas vidas e os seus haveres. Mas é exactamente para os defender que precisamos de negociar e acabar com a guerra.”
Mário Soares na Revista do Povo
Mário Soares na Revista do Povo
A 13 de Maio, Soares aclara o seu pensamento numa entrevista à Newsweek: “devemos começar a trabalhar imediatamente para um acordo de cessar-fogo com os guerrilheiros […] O general Spínola conhece a nossa posição: é a independência pura e simples.”
No próprio dia em que é empossado como ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares parte para Dacar, para aí se encontrar com Aristides Pereira, líder do PAIGC. A inexperiência executiva de Mário Soares, e provavelmente a visão sobredimensionada que tinha de si mesmo, levaram-no a partir para estes encontros em que se decidia o destino de milhões de pessoas sem qualquer preparação ou conhecimentos sobre os territórios em causa, confiando unicamente nos seus dotes oratórios e experiência política que à época era muito circunscrita.
Esse primeiro encontro do que seria o ciclo de contactos com vista à descolonização é o único que correu de forma a confirmar o optimismo dessa versão não tanto “pura e simples”, mas sobretudo simplista do novo ministro: no fim, a paz na Guiné foi anunciada triunfalmente ao país.
Por iniciativa da parte portuguesa, a reunião seria interrompida pois Mário Soares considerou que “não estava mandatado por Spínola para, naquelas condições, poder prosseguir as negociações e, muito menos, assinar o que quer que fosse.”
Fosse então por falta de preparação, voluntarismo ou ingenuidade, Mário Soares e Almeida Santos ao apresentarem o fim da guerra como algo ali ao alcance imediato das boas vontades e que só não acontecera antes por causa da teimosia dos dirigentes do regime deposto, colocaram-se nas mãos dos homens com quem vão ter de negociar, sejam eles do PAIGC, da Frelimo, ou posteriormente do MPLA, FNLA e UNITA, pois aos dirigentes de todos esses movimentos se tornara óbvio que os novos ministros não podem levar más notícias para Lisboa.
Por isso a cada encontro se vai tornar mais difícil explicar ao país o que está a acontecer: Almeida Santos esteve na ronda de negociações com o PAIGC que decorreu em Londres, entre 25 e 31 de Maio e onde já foi evidente que, pelo menos na Guiné, não iria ter lugar referendo algum.
Na capital inglesa, a delegação portuguesa confrontou-se não só com a exigência por parte do PAIGC do reconhecimento da independência da Guiné, que já era reconhecida por 83 países, mas também do reconhecimento do direito à independência de Cabo Verde. Por iniciativa da parte portuguesa, a reunião seria interrompida pois Mário Soares considerou que “não estava mandatado por Spínola para, naquelas condições, poder prosseguir as negociações e, muito menos, assinar o que quer que fosse.”
E se em Londres, diante do PAIGC, Mário Soares tivera ao seu lado, apoiando a sua posição, o militar escolhido por Spínola para integrar a delegação portuguesa, Manuel Monge, a verdade é que dias depois, em Lusaka, quando Mário Soares se recusou a reconhecer a Frelimo como o único interlocutor do povo moçambicano, foi desautorizado em plenas negociações pelo novo enviado de Spínola, Otelo Saraiva de Carvalho.
Uma curiosa imagem de Spínola de uma época em que já não controlava o processo político
Uma curiosa imagem de Spínola de uma época em que já não controlava o processo político
Conhecedor de tudo isto, o experiente advogado que Almeida Santos era dificilmente estaria tranquilo a 11 de Junho de 1974. Tal como acontece com Spínola, Almeida Santos às vezes parece procurar convencer-se a si mesmo quando discursa. Isso mesmo aconteceu, ainda em Maio, quando, em Luanda, garantira: “As vidas e os bens das minorias, como os direitos fundamentais das maiorias, serão não só acautelados, como objecto de constante e fundamental preocupação. Faço esta afirmação, não tanto porque a julgue necessária, mas porque, se há algo de que eu tenho medo é do próprio medo. Em si e sobretudo, se graduado em pânico, ele conduz em linha recta ao ressentimento, ao ódio e à violência. A paz começa em cada um de nós.”
Agora, em Junho, em Lisboa, quando diante de Silvino Silvério Marques e de Henrique Soares de Melo, conclui “como são infelizes os povos que perdem o sagrado direito de escolha e fiscalização dos seus governos”, pode dizer-se que as palavras de Almeida Santos revelam um homem que começava a ter poucas razões para acreditar na paz que prometia aos outros.
Perceber o que levou quase metade da Coordenadora do MFA à Guiné no início de Junho de 1974 é mergulhar nas contradições entre o dito, o desejado e o acontecido em que se enredam todos os presentes nesta cerimónia.

Coordenadora do MFA: o poder de estar no terreno

A assistir a esta cerimónia estão também representantes da Coordenadora do MFA. A 11 de Junho eles melhor do que ninguém sabem que uma coisa é o que se diz no Palácio de Belém e outra é a velocidade a que mudam os ventos nas assembleias do MFA: na terceira semana de Maio uma dessas assembleias votara favoravelmente a proposta de Manuel Monge: “em 26 ou 27 de Maio de 1974, houve, à noite, uma assembleia do MFA na Manutenção Militar – recordou em 1995 este militar numa entrevista concedida a Maria João Avillez – Perguntei aos meus camaradas se, nas negociações onde ia tomar parte, devíamos mostrar firmeza no sentido de acautelar os nossos interesses – ainda que nos pudesse acarretar dificuldades militares no terreno – ou se devíamos, como o Otelo defendia (e veio, aliás, a fazer com o Samora Machel!), considerar os movimentos emancipalistas credores de total apoio e confiança. Numa acalorada discussão, a maioria da assembleia concordou com a minha posição.”
Vasco Gonçalves substituiria em Julho Palma Carlos como primeiro-ministro
Vasco Gonçalves substituiria em Julho Palma Carlos como primeiro-ministro
Mas logo a 8 de Junho uma outra assembleia já votava a favor de um cessar-fogo imediato em Moçambique. E sobretudo os homens da Coordenadora do MFA sabem que para lá das palavras, por mais enfáticas e contraditórias que elas sejam, existe África, sobretudo a Guiné para onde três dos membros da Coordenadora tinham viajado há bem poucos dias. Perceber o que levou quase metade da Coordenadora do MFA à Guiné no início de Junho de 1974 é mergulhar nas contradições entre o dito, o desejado e o acontecido em que se enredam todos os presentes nesta cerimónia.
Os homens do MFA em Bissau começaram no próprio dia 26 de Abril, quando onze oficiais se dirigiram ao Gabinete do General Comandante, Bettencourt Rodrigues, impondo a sua demissão e imediato regresso a Lisboa, isto numa fase em que a JSN ainda não anunciara publicamente a substituição dos Governadores.
Os homens do MFA em Bissau definiram, nas palavras de um deles, Sales Golias, um objectivo: “contrariar a estratégia do General Spínola de efectuar uma consulta popular na Guiné com vista à sua integração numa comunidade lusíada” (2) e tornar as negociações com o PAIGC, que defendem ser o único interlocutor legítimo na Guiné, num modelo a repetir em Angola e Moçambique. Para esse objectivo definiram uma estratégia: precipitar as decisões da Junta de Salvação Nacional e do governo. E definiram um calendário de acção onde não se deixava para hoje o que podia ter sido feito ontem. Começaram no próprio dia 26 de Abril quando, em Bissau, onze oficiais se dirigiram ao Gabinete do General Comandante, Bettencourt Rodrigues, impondo a sua demissão e imediato regresso a Lisboa, isto numa fase em que a JSN ainda não anunciara publicamente a substituição dos Governadores.
Seguidamente, quando a JSN ainda previa integrar os agentes da PIDE nos SIM–Serviço de Informações Militares já os homens do MFA na Guiné tinham concentrado os agentes daquela polícia no Campo de Instrução Militar do Cumeré. Mas é sobretudo após a chegada à Guiné, a 7 de Maio, de Carlos Fabião, o tenente-coronel visto como o delfim de Spínola (ver caixa 5), que se institucionaliza o ascendente dos homens do MFA naquele território, como explica Sales Golias: “No seu discurso de posse [Carlos Fabião] fez o elogio, esperado, do General Spínola e terminou dizendo a frase, inesperada,…“por uma Guiné melhor num Portugal continuamente renovado.”
Após uma longa sessão de esclarecimento e discussão, o Brigadeiro Fabião aderiu às teses do MFA na Guiné, dizendo que devia ter terminado o seu discurso com esta outra frase …“por uma Guiné melhor e um Portugal continuamente renovado”. Consequentemente aceitou que o MFA continuasse no Gabinete de Governo.” – O que Sales Golias define nestas declarações como “longa sessão de esclarecimento e discussão” a que o MFA teria sujeito Carlos Fabião mal este desembarca na Guiné vai ser motivo de inúmeras especulações futuras.
Um mês depois da chegada de Fabião à Guiné, voam para Bissau três dos sete membros da Coordenadora do MFA, “tal era a curiosidade de perceber o que estávamos fazendo em Bissau, porque já nessa altura os boatos que circulavam em Lisboa não abonavam em nosso favor” – explica Sales Golias. Mas não seria certamente apenas uma questão de curiosidade que levou Melo Antunes, Almada Contreiras e Pereira Pinto a fazer essa viagem.
Os homens da Coordenadora do MFA que assistem à tomada de posse dos novos Governadores de Angola e Moçambique, tal como os membros da JSN, mostram-se indignados com as reportagens de Roby Amorim, que é mandado regressar a Lisboa
Entre aquilo que Sales Golias refere como boatos estariam provavelmente a forma como o MFA local se impusera a Carlos Fabião e certas informações militares como as que davam conta de que 3 de Junho a guarnição de Jamberem abandonara o seu posto e retirara para Cacine. Uma atitude que, segundo escreve o jornalista Roby Amorim em O Século a 4 de Junho de 1974, não seria única: “acredita-se que as guarnições de Gadamael e Cameconde, profundamente flageladas há largo tempo pelos guerrilheiros, lhe sigam o exemplo. Não se trata, aliás de um exemplo isolado, pois muitos jovens suboficiais estão a promover aqui mesmo, em Bissau, o que chamam de sessões de esclarecimento dos seus soldados (…) Este trabalho de esclarecimento, que está a realizar-se em todos os quartéis, pretende levar os soldados sem graduação a exercerem pressão crescente sobre os seus chefes para um regresso imediato à Europa”.
Os homens da Coordenadora do MFA que assistem à tomada de posse dos novos Governadores de Angola e Moçambique, tal como os membros da JSN, mostram-se indignados com as reportagens de Roby Amorim, que é mandado regressar a Lisboa, mas essa sua indignação é apenas a expressão do embaraço perante o que podem ser as reacções a essas notícias que sabem verdadeiras: Melo Antunes, Almada Contreiras e Pereira Pinto viram na Guiné como os homens do MFA marcam presença política dentro do gabinete de Fabião e mantêm uma estrutura de poder paralelo, desafiando a circular de Costa Gomes que em Maio, na qualidade de CEMGFA, mandara integrar as estruturas do MFA nas Forças Armadas.
Melo Antunes (ao centro) era a figura mais influente da Coordenadora do MFA
Melo Antunes (ao centro) era a figura mais influente da Coordenadora do MFA

Estes homens sabem também que deixaram implícito o apoio da Coordenadora do MFA às “sessões de esclarecimento” nos quartéis, e sobretudo o seu aval à rejeição do referendo que Spínola neste dia 11 de Junho prometia de Cabo-Verde a Timor. Neste momento eles sabem que, pelo menos na Guiné, já não irá ter lugar referendo algum pois como recorda Sales Golias: “Os nossos camaradas de Lisboa entenderam as razões que nos assistiam, perceberam que o ambiente socio-político-militar da Guiné não era, afinal, o modelo do General Spínola e, naturalmente, deram-nos o seu aval.”
Agora em Lisboa, enquanto ouvem o discurso de Spínola, aos militares da Coordenadora do MFA talvez lhes tenha vindo à memória a tranquilidade que precede os grande combates e em que ninguém está tranquilo à excepção óbvia dos que tudo desconhecem e naturalmente serão as principais vítimas.
A 11 de Junho de 1974 os presentes na cerimónia de posse dos novos governadores não estão tranquilos. Eles pretendem sim é que todos aqueles que vivem sob administração portuguesa se mantenham, mais do que tranquilos, suspensos no tempo, esperando que eles ultrapassem as profundas divergências ideológicas que os separam.
Adelino da Palma Carlos: Sabíamos lá o que estava a negociar-se!
Adelino da Palma Carlos comparece a esta cerimónia na qualidade de primeiro-ministro. Dele temos a certeza que não estava tranquilo pois ao contrário dos outros presentes registava o que se discutia e decidia em conselho de ministros e desses apontamentos resulta como evidente que o executivo não acompanhava aquilo que estava a ser negociado: “Estamos todos a nadar, em relação a estes problemas” – ouvira-se a 3 de Junho, no conselho de ministros, escassos oito dias antes desta cerimónia. Quem assim falara fora o ministro Vasco Vieira de Almeida.
Adelino da Palma Carlos
Adelino da Palma Carlos
Nesse dia, 3 de Junho, Mário Soares compareceu excepcionalmente ao conselho de ministros. Deu conta das negociações já mantidas com o PAIGC e abordou o encontro previsto para daí a alguns dias com a Frelimo. Perante a evidente falta de informações e descoordenação de datas – por exemplo, sabendo que a NATO poderia ter uma palavra a dizer no futuro de Cabo Verde, tinham-se agendado os encontros com o PAIGC para datas anteriores à cimeira da NATO onde o assunto poderia ser equacionado e reforçada a posição portuguesa face ao PAIGC – Vasco Vieira de Almeida pronuncia esta frase que anos mais tarde o próprio Adelino da Palma Carlos parece ter feito suas ao declarar numa entrevista a Helena Sanches Osório: “Sabíamos lá o que estava a negociar-se! Soares era o cabeça das negociações.”
As delegações portuguesas vão marcar reuniões para países onde Portugal não tinha embaixadas, logo onde os membros das delegações portuguesas não dispõem de qualquer apoio logístico e muito menos de informações. Absolutamente dependentes dos governos anfitriões, chegam a ficar em alojamentos dispersos e sem conseguirem comunicar entre si durante várias horas.
Por ironia da História a frase de Adelino da Palma Carlos é um retrato errado porque benévolo do que estava a suceder. Palma Carlos tem razão quando afirma que ninguém sabia o que estava a negociar-se. Mas tal acontece não porque a cabeça das negociações omitisse essa informação, como defende Palma Carlos, mas sim porque as negociações não tinham uma mas sim várias cabeças. São elas Spínola e “os seus rapazes”, eles mesmos profundamente divididos; Costa Gomes; Mário Soares; Almeida Santos; Melo Antunes e a Coordenadora do MFA em Lisboa para lá das coordenadoras do MFA na Guiné, Angola, Moçambique e Cabo Verde. E todas essas “cabeças” partem com projectos políticos diversos para estas negociações que alterariam as fronteiras do país e afectariam as vidas de milhões de pessoas.
A par disso a maioria fá-lo com um desconcertante amadorismo e falta de trabalho de bastidores prévio: as delegações portuguesas vão marcar reuniões para países onde Portugal não tinha embaixadas, logo onde os membros das delegações portuguesas não dispõem de qualquer apoio logístico e muito menos de informações. Absolutamente dependentes dos governos anfitriões, chegam a ficar em alojamentos dispersos e sem conseguirem comunicar entre si durante várias horas.
Na verdade, a 11 de Junho de 1974 não podiam estar tranquilos nem os europeus nem os africanos. E muito menos os presentes nesta cerimónia estão tranquilos ou lhes podem garantir essa tranquilidade. Eles pretendem sim é que todos aqueles que vivem sob administração portuguesa se mantenham, mais do que tranquilos, suspensos no tempo, esperando que eles ultrapassem as profundas divergências ideológicas que os separam.
A 25 de Abril de 1974 Spínola leu ao país a Proclamação da Junta de Salvação Nacional cujo primeiro ponto garantia que a JSN “assume o compromisso de garantir a sobrevivência da Nação como Pátria soberana no seu todo pluricontinental.” E desde então os membros da JSN, da Coordenadora do MFA e do Governo conspiram, combatem, movimentam-se e deixam-se movimentar de modo a impor a sua interpretação dessa alínea.
Estes homens falam de descolonização e de liberdade de escolha mas não concebem que outros que não eles e aqueles que eles escolhem como interlocutores possam intervir nessas directrizes sobre as quais aliás eles não só não conseguem chegar a consenso como têm visões antagónicas. E enquanto se digladiam entre si eles querem, pedem e exigem que os colonos, os brancos, os africanistas, os europeus, os ultramarinos, os residentes e os metropolitanos se mantenham tranquilos na expectativa do que Lisboa decidir ou acreditar que decide.
Spínola prometia um referendo que ninguém sabia como realizar
Spínola prometia um referendo que ninguém sabia como realizar
Assim ninguém sabe que referendo é este que Spínola, Costa Gomes e Almeida Santos garantem que se vai efectuar. Nem se é viável a sua realização em todos os territórios, nomeadamente na Guiné, já reconhecida por dezenas de Estados como país independente desde 1973 e onde as Forças Armadas Portuguesas não controlavam todo o território. Se alguém acreditou alguma vez na realização desse referendo, a 11 de Junho todos os presentes no Palácio de Belém têm dúvidas sobre a sua realização e alguns, como acontece com os membros da Coordenadora do MFA, opõem-se à sua realização.
Os civis residentes em África e em Timor serão as vítimas implícitas e inevitáveis do confronto dentro de umas Forças Armadas profundamente divididas mas unânimes na disposição de fazerem o que for preciso para defender a sua imagem.
Algumas das hipóteses então formuladas pelos responsáveis portugueses implicam mesmo responsabilidades para outros países sem que esses países se tivessem pronunciado ou sido consultados sobre esses processos como sucedeu em Timor, cujo Governador, Fernando Alves Aldeia, anunciara, no fim de Maio, a realização em data a definir de um referendo através do qual os timorenses decidiriam manterem-se portugueses, tornarem-se independentes ou integrarem-se na Indonésia. Muito menos parece que alguém tenha perdido uma hora sequer a pensar na articulação entre esse referendo e a eleição do futuro parlamento português, do qual sairia a nova Constituição.
Só impropriamente se pode designar o que conhecemos como descolonização como um processo negocial entre Portugal e aqueles que foram definidos como seus interlocutores. O que aconteceu foi sim um ciclo de contactos agendados sem qualquer preparação, articulação e sentido de Estado por parte dos negociadores portugueses, em que diversas facções das Forças Armadas e diferentes correntes políticas lutaram entre si para impor a sua posição.
Negar que a tranquilidade acabou vai ser provavelmente a única coisa que une todos estes homens. Os civis residentes em África e em Timor serão as vítimas implícitas e inevitáveis do confronto dentro de umas Forças Armadas profundamente divididas mas unânimes na disposição de fazerem o que for preciso para defender a sua imagem.
A 11 de Junho a tranquilidade para os presentes nesta cerimónia é como o Tejo que avistam da janela: o enquadramento indispensável para que eles possam combater-se surdamente uns aos outros. E, para que, aconteça o que acontecer, os militares não surjam como derrotados ou traidores e os políticos como incompetentes.
Mas a História não lhes vai fazer a vontade. Dentro de pouco tempo o muito que os separa tomará conta do país e, imperceptivelmente primeiro, torrencialmente depois, no meio das manifestações, das barricadas e dos piquetes começarão a ver-se os caixotes dos colonos, dos brancos, dos africanistas, dos europeus, dos ultramarinos, dos residentes e dos metropolitanos. Ou seja dos milhares a quem chamaram retornados.

Citações retiradas de
A revolução das flores, Coord. Henrique Barrilaro Ruas, Vol. I e II Editorial Aster, S.d.
Cinco meses mudaram Portugal, Otelo Saraiva de Carvalho, Portugália, 1975
Costa Gomes. O último marechal, Maria Manuela Cruzeiro, Círculo de Leitores, 1998
Conversas com Adelino da Palma Carlos: um só rosto, uma só Fé, Helena Sanches Osório, Referendo, 1988
Jorge Jardim: agente secreto, José Freire Antunes, Bertrand Editora, 1996
Mário Soares Ditadura e Revolução, Maria João Avillez, Círculo de Leitores, 1996
Melo Antunes. O sonhador pragmático, Manuela Cruzeiro, Círculo de Leitores, 2004
Memórias da Revolução, Manuel Amaro Bernardo, Prefácio, 2004
O Equívoco do 25 de Abril, Sanches Osório, Editorial Intervenção, 1975
País sem rumo. Contributo para a História de uma Revolução, António de Spínola, Editorial SCIRE, 1978
Quase Memórias, Almeida Santos, Círculo de Leitores, 2006, vol. I
Salazar, o Ultramar e o 25 de Abril, Silvino Silvério Marques, Nova Arrancada, 2001
Spínola, Luís Nunes Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010
(1) Sobre este encontro ver as declarações de Manuel Lucena nos Estudos Gerais da Arrábida, A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA, Painel dedicado à Metrópole (1 de Setembro de 1995) http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/docs/metropole_1995_09_01.pdf
(2) Declarações produzidas a 30 de Abril de 2005, pelo tenente-coronel Sales Golias em Coimbra, durante uma Mesa Redonda levada a efeito pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra/Fórum dos Estudantes da CPLP e disponíveis online em http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=th6
(3) Declarações produzidas pelo tenente-coronel Aniceto Afonso nos Estudos Gerais da Arrábida, A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA. Painel dedicado a Moçambique (29 de Agosto de 1995) http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/docs/mocambique_1995_08_29.pdf

Caixa 1 – O caso Peralta

Pedro Rodriguez Peralta era um capitão do Exército Cubano, enviado para a Guiné como instrutor do PAIGC. A 18 de Novembro de 1969 fora capturado pelas Forças Armadas Portuguesas numa operação que visava aprisionar Nino Vieira. Enviado para Bissau e em seguida para Lisboa, o capitão Peralta foi condenado e mantido sob prisão em Caxias. Em meados de 1973 foi transferido para o Hospital da Cruz Vermelha. Após o 25 de Abril, o capitão Peralta deixa de estar sob a tutela da DGS passando para a custódia dos militares. E é precisamente junto ao Hospital Militar, no Largo da Estrela, que a 25 de Maio de 1974, várias organizações de esquerda e de extrema-esquerda se manifestam exigindo a libertação do capitão Peralta que ali se encontrava. Os manifestantes mantiveram-se durante a noite no Largo da Estrela e só de lá saíram no dia seguinte após intervenção da PSP e da GNR.
Uma página do Diário de Lisboa com notícia de uma das manifestações
Uma página do Diário de Lisboa com notícia de uma das manifestações
Spínola referirá nas suas memórias as pressões que sofreu por parte de Costa Gomes e de Vasco Gonçalves com vista à libertação imediata de Peralta. Rosa Coutinho defende que Spínola pretenderia trocar Peralta por norte-americanos detidos em Cuba. Independentemente do valor de Peralta enquanto moeda de troca nessas ou noutras negociações, é unânime considerar este caso como um dos primeiros momentos em que se tornaram óbvias as divergências entre Spínola e a Coordenadora do MFA.
O capitão Peralta deixou Lisboa a 15 de Setembro de 1974. Peralta regressou a Cuba como um herói: Fidel Castro esperava-o no aeroporto. Acompanhou-o nessa viagem a enfermeira portuguesa Filomena Serra, que segundo a imprensa da época se teria apaixonada pelo militar cubano durante o período em que este esteve detido no hospital da Cruz Vermelha.

Caixa 2 – Diplomacias paralelas

A 2 de Maio, Mário Soares, que não era ainda ministro dos Negócios Estrangeiros, partira a pedido de Spínola para as capitais europeias em busca do apoio internacional de que Lisboa precisava. Em Bruxelas, resolve encontrar-se por sua “exclusiva iniciativa” com Agostinho Neto. Nesse encontro terá garantido a Agostinho Neto questões de princípio: “Que iria haver contactos e negociações entre nós para chegarmos rapidamente ao cessar-fogo e, depois, à paz.” Já o líder africano terá procurado obter “informações, precisões sobre pontos para ele obscuros, quem era quem no MFA” (12). A atitude cautelosa de Agostinho Neto é tão mais justificada quanto, nesse encontro, ele terá constatado que Mário Soares ignorava que no dia seguinte ele, Agostinho Neto, iria encontrar-se em Genebra com um enviado de Spínola, Nunes Barata.
Mário Soares, que não era ainda ministro dos Negócios Estrangeiros, partira a pedido de Spínola para as capitais europeias em busca do apoio internacional de que Lisboa precisava. Em Bruxelas, resolve encontrar-se por sua “exclusiva iniciativa” com Agostinho Neto. Nesse encontro terá garantido a Agostinho Neto questões de princípio: “Que iria haver contactos e negociações entre nós para chegarmos rapidamente ao cessar-fogo e, depois, à paz.”
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Segundo Nunes Barata declarou em 1993 ao jornalista José Pedro Castanheira o embaixador português em Copenhaga teria feito saber que Agostinho Neto desejava encontrar-se com um delegado da Junta de Salvação Nacional. Na sequência desta informação, o general Spínola envia Nunes Barata ao encontro de Agostinho Neto. Nunes Barata, acabara de chegar de Paris onde, acompanhado por Carlos Fabião, se reuniu com Senghor, o presidente do Senegal que dois anos antes se encontrara com Spínola e discutira com ele uma solução negociada para a Guiné (solução essa que agora, em 1974, defende já ser inviável pois, afirma, é já demasiado tarde para qualquer solução que não passe pelo reconhecimento imediato da independência). Ao encontro de Agostinho Neto, Nunes Barata viaja sozinho. Leva uma proposta da JSN ou pelo menos de Spínola: “reunir todos os movimentos de libertação, nos Açores, a que seguiria uma consulta, a realização de eleições, etc…”
A reacção de Agostinho Neto a esta proposta “não foi contrária” embora o sim à cimeira tenha ficado condicionado a uma reunião que o MPLA iria fazer em Brazaville.
Nunca veio resposta alguma. Porquê? Segundo Nunes Barata porque “Possivelmente, o bureau político [do MPLA] não aceitou as conversações. É provável que tenha havido contactos, por parte de forças políticas portuguesas, que se movimentaram para evitar a conferência.” Spínola no seu livro “País sem rumo” identifica estas “forças políticas portuguesas” como “elementos pró-comunistas do MFA”.
Infelizmente não foi apenas Angola a sofrer as consequências destas diplomacias paralelas tão mais perigosas quando praticadas por negociadores que partem do ingénuo princípio de que mais ninguém as pratica.

Caixa 3 – Do medo do enxovalho à irreversibilidade do 25 de Abril

Os factos ocorridos em Janeiro de 1974 em Vila Pery e na Beira tiveram uma importância não absoluta mas inegavelmente muito importante na criação das condições psicológicas que levaram os capitães a pôr em marcha o golpe que vinham equacionando. A 21 de Janeiro de 1974, chegam dois telegramas à Comissão de Lisboa do MFA, provenientes de Moçambique. Aí  pode ler-se: “Começam a concretizar-se nossos receios criação bode expiatório”. Os membros do MFA em Moçambique deixam clara a convicção de que as Forças Armadas serão esse bode expiatório e insinuam a conivência das forças policiais, como a PSP e a PIDE, nessa campanha  de “enxovalho” dos militares. Consideram que em Vila Pery se corre o risco de vir a acontecer um “recontro entre população civil Europeia e o Exército”. Por fim, concluem: “Prestígio FA muito afectado, enxovalho ameaça irreversibilidade.”
Vila Pery
Vila Pery
Em Lisboa, a Comissão Coordenadora do MFA reage aos telegramas vindos de Moçambique. Logo na primeira circular de 1974, datada de 23 de Janeiro, o movimento faz-se eco dos acontecimentos da Beira e promete contactar “o mais elevado escalão militar”, o que se traduz por um encontro entre Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço e Spínola, este último recentemente empossado como Vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Os membros da Coordenadora dão conta a Spínola do que acontecera na Beira e em Vila Pery.
Começa então a contagem decrescente para o golpe militar. Este seria em Lisboa mas poderia também ter sido em Lourenço Marques: investigações recentes do jornalista José Pedro Castanheira dão conta da intenção dos capitães em Moçambique de, após os incidentes da Beira, avançarem para uma tomada do poder militar em Moçambique caso as chefias em Lisboa não avançassem: era a Operação Zulu. Mas, como recorda um dos protagonistas desses contactos, o Tenente-coronel Aniceto Afonso: “Lisboa disse-nos peremptoriamente: «Não há iniciativas nas colónias, nós estamos aqui e somos nós que centralizamos a acção.» Isto em finais de Fevereiro [de 1974]. «Nós estamos a preparar o Programa, estamos a preparar uma acção e somos nós que centralizamos e vocês deixem-se disso»” (3). A Operação Zulu não avançou. Lisboa antecipou-se: a 25 de Abril os militares vieram para a rua. Também contra o enxovalho.

Caixa 4 – O Plano Lusaka

“O plano de Lusaka era o contrário de tudo o que se podia aceitar. Primeiro, o Jardim não tinha credenciais para fazer as negociações que fez. Segundo, num país com três guerras (a única situação calma era Angola) o desmoronar de um dos pilares afectaria os outros.”
Esta definição de Costa Gomes, feita durante uma entrevista a José Freire Antunes a propósito de Jorge Jardim e do seu Plano Lusaka, é uma espécie de roteiro do que vai acontecer na descolonização, embora esta tenha decorrido sem plano Lusaka: vários dos negociadores não têm oficialmente credenciais para fazerem as negociações que fizeram. O desmoronar de um dos pilares afectou todos os outros e mesmo territórios sem guerra, como eram os casos de São Tomé, Timor e Cabo Verde conheceriam rapidamente episódios de violência.
Jorge Jardim com a filha Carmo Jardim
Jorge Jardim com a filha Carmo Jardim
O que distingue portanto o plano Lusaka de Jorge Jardim dos diversos planos daqueles que fazem a descolonização em nome de Portugal não é assim o facto de ele ser viável ou desastroso ou de Jorge Jardim não ter credenciais para negociar. O que o distinguia é que surgia como uma reacção de alguém que pertence ao mundo dos colonos, dos brancos, dos africanistas, dos europeus, dos ultramarinos, dos residentes e dos metropolitanos. E isso é que, parafraseando Costa Gomes, era o contrário de tudo o que Lisboa seria capaz de aceitar.
Jorge Jardim, empresário, político, enviado de Salazar e aventureiro, é um daqueles portugueses que em África encontrou a dimensão necessária ao seu voluntarismo. Desde 1973 que Jorge Jardim promove um projecto, o Plano Lusaka, com vista à independência de Moçambique. Conta com o apoio do Presidente da Zâmbia, Keneneth Kaunda, e de Banda, do Malawi, e mantém contactos com outros movimentos moçambicanos, nomeadamente a FRELIMO.
A 25 de Abril de 1974 Jorge Jardim estava em Lisboa. Uma semana antes, a 17, fora recebido por Marcelo Caetano que, segundo recordações de Jorge Jardim, passou os olhos pelos papéis do Plano Lusaka com um “desalento que rondava a fonteira do desinteresse” acusou Jardim de ter “ido longe de mais”. A 4 de Maio Jorge Jardim é recebido por Spínola a quem dá conta do Plano Lusaka e dos contactos que mantém. Onze dias depois, a 15 de Maio, Spínola é empossado como Presidente da República e na noite desse mesmo dia pede a Jorge Jardim, que se preparava para regressar a África, que se encontre de novo com ele. Em Belém, Jorge Jardim tem à sua espera Spínola e também Costa Gomes. Ambos os generais se manifestam contra a sua partida.
O Plano Lusaka morreu a 21 de Maio quando Jorge Jardim, informado de que a JSN (ou parte dela) se preparava para o mandar prender, se refugiou na embaixada do Malawi, em Lisboa. Vai ficar aí 23 dias.
“Já se sabia que, se ele fosse para Moçambique, ia fazer a revolução” – declara mais tarde Costa Gomes. Quer ele quer Spínola não só convencem Jorge Jardim a ficar como anulam para sempre o Plano Lusaka: as duas cartas que Jorge Jardim anui a escrever para Kaunda e para Banda dando conta da sua articulação com o novo regime foram cortadas e remontadas por ordem de Costa Gomes e de Spínola: “eu não tiro uma vírgula à responsabilidade que tive nos cortes” – assume frontalmente Costa Gomes na conversa que mantém com José Freire Antunes sobre Jorge Jardim.
A remontagem do texto ordenada por Costa Gomes e por Spínola retirava a Jorge Jardim qualquer protagonismo nas futuras negociações diplomáticas que versassem Moçambique.
O Plano Lusaka morreu a 21 de Maio quando Jorge Jardim, informado de que a JSN (ou parte dela) se preparava para o mandar prender, se refugiou na embaixada do Malawi, em Lisboa. Vai ficar aí 23 dias. Mais precisamente, enquanto em Belém Spínola dá posse aos governadores de Angola e Moçambique, Jorge Jardim ultima os preparativos para a fuga que vai encetar na noite seguinte e na qual conta com a cumplicidade do Estado-Maior do Exército, pois é de lá que sai a a ordem para que o comandante da PSP de Lisboa, Casanova Ferreira retirasse nessa noite a guarda à embaixada. A 13 de Junho, Jorge Jardim já está em Madrid. Dentro de muito pouco tempo vai constatar que o futuro de Moçambique já não passa por ele. Mas não vai estar só nessa amarga constatação: em Lisboa, Spínola e Costa Gomes vão enfrentar-se e enfrentar outros antagonistas que os tentarão reduzir à irrelevância política, tal como eles fizeram com Jorge Jardim.
Mas isso é o futuro. Para já, neste início de Junho de 1974, o Plano Lusaka morreu porque tal como Marcelo Caetano dissera “ia longe de mais”. Ou sobretudo ia numa direcção que não estava prevista. Aliás, quando Costa Gomes declara sobre a necessidade de impedir que Jorge Jardim voltasse a África “Já se sabia que, se ele fosse para Moçambique, ia fazer a revolução” coloca a questão de forma muito clara: Lisboa mantinha-se colonial na forma de agir. E tal como, até ao dia 25 de Abril de 1974, esses colonos, brancos, africanistas, europeus, ultramarinos, residentes e metropolitanos viram todas as suas formas de organização política subordinada aos interesses de Lisboa, de igual modo após o 25 de Abril não se prevê que tenham uma palavra a dizer sobre o seu destino.

Caixa 5 – Carlos Fabião: qualquer coisa no género e o seu contrário

A atitude de Carlos Fabião neste período, na Guiné, a par da sua actuação posterior enquanto Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME) em que, a 21 de Novembro de 1975, acaba a dar o seu assentimento ao juramento de bandeira segundo fórmula revolucionária no RALIS, vai causar posteriormente as maiores incompreensões ao sector militar não afecto ao PCP.
Carlos Fabião
Carlos Fabião

Seja por solidariedade castrense, opção pela versão mais desresponsabilizante e naturalmente também por lhes parecer verosímil, a tese das pressões ou chantagem exercida a partir de Maio de 1974 sobre Carlos Fabião (e não só) é partilhada por militares como o tenente-general Tomé Pinto, tenente-coronel António Ramos, tenente-general Ricardo Durão, tenente-general Passos Esmeriz e pelo major-general Manuel Monge. Este último no testemunho que dá a Manuel Amaro Bernardo não só afirma “Conheço pessoalmente oficiais do Quadro Permanente que foram alvo de chantagem” – como avança uma explicação para o que poderá ter sido, na sua opinião, a matéria que serviu a essa chantagem sobre esses oficiais e também sobre Carlos Fabião:“telhados de vidro poderão ter os que estiveram na guerra, no terreno. Poderá ter havido alguma altura em que utilizaram meios mais ou menos violentos, ou qualquer coisa no género.”
Independentemente de todo este jogo de bastidores, Carlos Fabião, no que respeita à Guiné, terá sido certamente influenciado pelo encontro que teve em Paris, quase imediatamente a seguir ao 25 de Abril, com o presidente do Senegal: “Aquando do golpe em Portugal, Senghor estava em Paris, a caminho de uma visita à China. E pede então a Spínola que lhe envie um emissário falar com ele. [Spínola] escolhe o Nunes Barata porque o Senghor já o conhecia das reuniões no Senegal e a mim porque o general já estava nessa altura a querer enfiar-me para a questão da Guiné. [Senghor] Limitou-se a mandar dizer a Spínola que o projecto de há dois anos estava inviabilizado porque 82 países – entre os quais o seu – tinham já reconhecido a Guiné Bissau e que ele não voltaria atrás. Recomendou mesmo que o general reconhecesse a Republica da Guiné, pois seria um bom sinal dado à OUA. Ficamos uns dias em Paris, e vi, na televisão, o “1º de Maio” em casa do nosso cônsul. Falei para Lisboa a felicitar o general Spínola por aquela festa tão bonita e depois regressei a Lisboa. Mas o general não aceitou reconhecer a Republica da Guiné. Não quis fazer esse gesto.” – recordou Fabião numa entrevista dada a Maria João Avillez em 1994.
Faria Paulino, um dos homens que o MFA colocou junto de Carlos Fabião
Faria Paulino, um dos homens que o MFA colocou junto de Carlos Fabião
Nada especulativa e bem objectiva é a estratégia do MFA na Guiné que consegue colocar no Gabinete do Encarregado do Governo e delegado da JSN na Guiné, Carlos Fabião, três representantes seus: o capitão-tenente Pessoa Brandão, pela Marinha; o capitão Faria Paulino, pela Força Aérea, e o capitão Sales Golias, pelo Exército são os primeiros representantes do MFA no Gabinete de Fabião. A mesma estratégia do MFA se impor politicamente aos governadores vai ser seguida em Angola. Quando Silvino Silvério Marques convoca o Conselho de Defesa em Angola é também confrontado com a presença de três membros do MFA que declaram ao Governador que “Lisboa sabia daquela situação”.









A descolonização portuguesa não tem autores. Ninguém assume a sua paternidade. E como nos explica Helena Matos neste ensaio, ela já era irreversível em Junho de 1974, uma altura de falsa tranquilidade
A resposta a esta pergunta é simples: ninguém. No início a descolonização foi vista como a página dourada onde homens como Spínola, Soares e Almeida Santos sonhavam inscrever no topo o seu nome. Depois tornou-se no facto cuja autoria ninguém reivindica e cuja responsabilidade todos enjeitam. E contudo desde os primeiros momentos que estavam reunidos os elementos para que a descolonização fosse uma tragédia mais que anunciada.
Como sempre sucede com as tragédias não faltam a posterioridatas nem factos que podem ser 

HelenaMatos
Helena Matos
Para muitos os retornados surgiram em 1975, eram brancos e vieram na ponte aérea. Mas não: os primeiros chegaram no Verão de 74. Boa parte deles não eram brancos e muitos nunca tinham saído de África.
É uma história longa e complexa, a dos retornados. Três fugiram de bicicleta. Outros arriscaram atravessar o oceano em simples traineiras. Milhares embarcaram em paquetes para uma viagem que eles sabiam não ser de retorno nem ter retorno. Existem ainda aqueles que ao volante de camiões ou de simples automóveis inventaram rotas de fuga pelo continente  africano. Por fim, a maior parte, chegou às centenas de milhar numa ponte aérea que parecia interminável.
Chamaram-lhes retornados. Como se o seu drama fosse uma fatalidade histórica: quem retorna volta ao sítio onde pertence. Mas esse não era o seu caso. Não só muitos deles tinham nascido em África como, ao contrário dos emigrantes, que então partiam para a França e a Alemanha, eles não tinham vindo fazer casas na terra nem cantavam saudades da aldeia que tinham deixado no território a que hoje chamamos Portugal e a que eles chamavam Metrópole ou Portugal Europeu.
Quando deixaram África essa Metrópole não era tanto a sua terra – alguns nem sequer cá tinham vindo alguma vez e a maior parte deles já não se reconhecia na pequenez do país e muito menos no acanhamento dos seus costumes – mas sim o porto possível de abrigo para onde se precipitaram na esperança de escapar às consequências duma tragédia cuja dimensão os ultrapassava.
Seja na versão oficial ou no imaginário de cada um de nós, os retornados são um fenómeno de 1975. De facto são de meados de 1975 as imagens dos caixotes junto ao Padrão dos Descobrimentos e das crianças sentadas no chão do aeroporto de Lisboa. É também em 1975 que começa oficialmente a ponte aérea que traria centenas de milhar de portugueses de África. E, finalmente, é em 1975 que perante a evidência da catástrofe se arranjou um termo politicamente inócuo susceptível de nomear essa massa humana de gente que só sabia que não podia voltar para trás. Arranjar um nome para esse extraordinário movimento transcontinental de milhares e milhares de portugueses foi difícil não porque as palavras faltassem mas sim porque os factos sobravam. Retornados foi a palavra possível para que militares, políticos e o país pudessem salvar a face não apenas perante eles, mas sobretudo perante a História.
Contudo não só eles não eram retornados como surgiram muitos meses antes de a palavra retornado ter conseguido chegar às primeiras páginas dos jornais portugueses. Desde Junho de 1974 que encontramos notícias sobre a fuga dos colonos, dos brancos, dos africanistas, dos europeus, dos ultramarinos, dos residentes e dos metropolitanos. Enfim de pessoas que residiam em Angola, Moçambique, Guiné, Timor e Cabo-Verde.
Chamaram-lhes desalojados, regressados, repatriados, fugitivos, deslocados ou refugiados. Finalmente, em meados, de 1975 tornar-se-ão retornados. O nome colou-se-lhes. Ficaram retornados para sempre. Como se estivessem sempre a voltar.
Nenhum destes termos é verdadeiramente apropriado para descrever o que eles de facto eram mas a desadequação dos sinónimos foi breve pois dentro de poucos meses eles deixam de ser definidos em função dessa África onde foram colonos, brancos, africanistas, europeus, ultramarinos, residentes ou  metropolitanos e passam a ser definidos em função da própria fuga. Então passarão a ser desalojados, regressados, repatriados, fugitivos, deslocados ou refugiados.
Finalmente, em meados, de 1975 tornar-se-ão retornados. O nome colou-se-lhes. Ficaram retornados para sempre. Como se estivessem sempre a voltar. Não fosse o povo ter chamado bairro dos retornados a alguns conjuntos de habitação social, geralmente pré-fabricada, para onde muitos deles foram residir e não se encontraria outra referência nas nossas ruas à sua existência.
Deles o poder, político e militar, falou o menos possível. A comunicação social tão ávida de histórias demorou anos a interessar-se por aquilo que eles tinham para contar. E os poucos que passaram a papel as memórias desse tempo dificilmente conseguiram romper o universo restrito das edições de autor.
Perceber o percurso que nos leva dos “brancos racistas em fuga” de Julho 1974 ao “retornado ressentido” de 1976 é o objectivo desta série de artigos.

Cabo-verdianos, o contingente esquecido

“Continuam a chegar à cidade da Praia grupos de trabalhadores cabo-verdianos que se encontravam na metrópole. Para muitos deles, o regresso ao arquipélago é definitivo pois foram abrangidos pela vaga de despedimentos que se regista em vários sectores, especialmente na construção civil” informava a 21 de Julho de 1974 a RTP.
Pouco mais se sabe sobre estes homens, mas lendo o que quase um ano depois, a 3 de Abril de 1975, escreve o jornal “Alavanca”, editado pela Intersindical, ficamos a saber algo mais sobre eles. Ficamos, por exemplo, a saber que muitos recusavam retornar a África: “Após o 25 de Abril começaram-se a verificar alguns regressos a Cabo Verde. Numa média de cerca de 500 por mês. Estes trabalhadores regressavam com passagens pagas pelo Governo português. Contudo, muitos deles, chegados a Cabo Verde, voltavam a embarcar para Lisboa”.
Na origem deste embarque, no Verão de 1974, dos cabo-verdianos com destino ao seu arquipélago de origem, devem ter pesado informações como esta que a 26 Junho de 1974  chegava à mesa do ministro da Administração Interna, tenente-coronel  Costa Braz, sob a forma de Relatório Confidencial do Comando Geral da PSP: “no sector da construção civil estão a ser despedidos no Algarve, centenas de operários, grande parte deles cabo-verdianos. Paralelamente continuam a afluir ao Algarve vários oriundos de Cabo-Verde que não vêm por intermédio do Serviço Nacional de Emprego (…). A crise que se desenha na construção civil está a reflectir-se ainda nas Finanças, onde desde 25 de Abril passado não têm sido tiradas SISAS.”
Os cabo-verdeanos provenientes de Luanda, a fazer fé nas declarações do então Governador de Cabo-Verde, estão famintos e “maltratados, mal dormidos, preocupados com a sua vida.”
O embarque em Portugal destes homens com destino a Cabo-Verde não suscitou à época qualquer atenção, tal como meses depois também não gerou qualquer interesse ou estranheza que no aeroporto do Sal um avião levantasse voo in extremis antes do então presidente do Zaire e a sua comitiva aterrarem. Nesse voo que partira de forma precipitada viajavam cabo-verdeanos que estavam a chegar ao Sal em dois voos diários provenientes de Luanda. Evitar que nesse dia 14 de Setembro de 1974 Mobutu, e também Spínola que ali o aguardava, se confrontassem com tão incómoda presença levou o Governador de Cabo-Verde, almirante Henrique Afonso da Silva Horta, a dar ordem para que fossem enviados para outras ilhas do arquipélago. Por contraste o pequeno grupo que se manifestava a favor do PAIGC teve livre circulação no aeroporto tendo até viajado para o Sal no mesmo avião que o Governador.
Ao contrário dos homens idos de Lisboa, estes cabo-verdeanos provenientes de Luanda, a fazer fé nas declarações do então Governador de Cabo-Verde, estão famintos e “maltratados, mal dormidos, preocupados com a sua vida.” A este problema há ainda que juntar a cólera que então existia em Cabo-Verde.
Em Luanda há um sentimento crescente de insegurança que se materializa perante duas mortes: um enfermeiro negro é morto numa rixa num bar e, na noite de 10 para 11 de Julho de 1974, no musseque do Rangel, descobre-se o cadáver de um branco. Fora degolado. Chamava-se António Augusto Saldanha e era motorista de táxi.
Como é que estes cabo-verdeanos ali tinham chegado? Mais uma vez as palavras do almirante Henrique Afonso da Silva Horta são eloquentes: “O meu amigo Rosa Coutinho telefonou-me a dizer: «Eh pá, vou mandar-te os cabo-verdianos. Eles estão aqui na Ilha (de Luanda). Se isto continua muito tempo não consigo garantir a segurança deles. Vou repatriá-los. Vou-te mandar os cabo-verdianos que cá estão, tantos por dia (eram dois Jumbos) para o Sal e depois tu dizes o que precisas de dinheiro que eu dou-te. Eu, na altura, não precisava de dinheiro: precisava era de os tirar do Sal onde nem água tinham para beber, chegando cerca de 700 gajos por dia. (…) O Rosa Coutinho tinha outros problemas em Angola e tinha de despachar aquele. Para mim, o grande problema era tirá-los do Sal e, à falta de outra solução, voltarem para as ilhas a que pertenciam, tinham lá família. Os primos, os tios recebem-nos. Têm onde ficar, têm de comer; mal, mas têm.” (1)
medo irreversível
O
s jornais de Lisboa começavam a refletir o que se passava nas colónias, em especial em Luanda
Para perceber porque tinham viajado em condições tão precárias de Luanda para o Sal é necessário recordar alguns acontecimentos desse mês de Julho de 1974 na capital angolana, onde após um motim e fuga de presos de delito comum, é alargada a Angola a amnistia decretada para a então metrópole. De repente ficam nas ruas mais de mil condenados. Uma rua onde a insegurança cresce e onde o governador-geral, Silvino Silvério Marques tem cada vez menos meios para impor a ordem, pois no início de Junho o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Costa Gomes,  retirara ao governador-geral de Angola competência sobre a PSP e a Organização Provincial de Voluntários de Defesa Civil.
Na cidade do asfalto avolumam-se milhares de pessoas que recusam voltar às suas casas, aliás muitas delas entretanto queimadas, nos musseques. Querem sair de Luanda. Vão ser eles os primeiros retornados de Angola.
Em Luanda há um sentimento crescente de insegurança que se materializa perante duas mortes: um enfermeiro negro é morto numa rixa num bar e na noite de 10 para 11 de Julho de 1974, no musseque do Rangel, descobre-se o cadáver de um branco. Fora degolado. Chamava-se António Augusto Saldanha e era motorista de táxi. Tenha sido esta última morte o resultado de um acto de banditismo ou de uma estratégia com vista a acicatar os ânimos que já andavam inquietos, a verdade é que Luanda nunca mais teve calma: os confrontos nos musseques sucedem-se.
No chão térreo dos musseques ficam cadáveres e um rasto de destruição. No ar desses bairros de arruamentos labirínticos multiplicam-se os papagaios de papel que visavam impedir a visibilidade e o voo dos helicópteros de onde os militares davam instruções e orientação às patrulhas que em terra procuravam acudir aos focos de problemas.
Na cidade do asfalto avolumam-se milhares de pessoas que recusam voltar às suas casas, aliás muitas delas entretanto queimadas, nos musseques. Querem sair de Luanda. Vão ser eles os primeiros retornados de Angola.

“Exemplos típicos de agressão ideológica reaccionária”

Em Lisboa os acontecimentos de Luanda são encarados com o embaraço constrangido de quem no meio de uma festa assiste a um comportamento menos conveniente. Equacionar em Portugal, em Julho de 1974, que aquilo que hoje se designa de forma mais ou menos consensual como o drama dos retornados pudesse vir sequer a acontecer era entendido como uma atitude anti-democrática e desleal para com o país novo que se celebrava e a descolonização perfeita que se garantia e naturalmente desejava.
No Verão de 1974 a inquietação de que os portugueses residentes em África – Portugal regia nesta época a nacionalidade pelo princípio do solo, pelo que eram portugueses todos aqueles que tivessem nascido em qualquer parcela do solo nacional – vão dando sinal era, no caso dos brancos, imediatamente apresentada como algo de marginal, quase sempre resultado de manobras reacionárias “duma minoria teimosa e egoísta, que se recusa a reconhecer as perspectivas de futuro”, como a define Vasco Gonçalves a 24 de Julho a uma televisão alemã.
No Verão de 1974, Portugal já não tinha exame prévio mas estava longe de ser um país sem coação sobre a pouca imprensa que questionava a verdade oficial e, sobretudo, os desejos dos governantes em matéria de descolonização.
Uma minoria que, inevitavelmente, é acusada de pretender aquilo que se designava como “independência branca”. Ou que, numa versão mais paternalista, padece de um infundado alarmismo, como explica a 5 de Maio de 1974 Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial: “Receiam alguns que as negociações ponham em risco aquilo que são, que têm, ou de que dependem. Afligem-se sem lógica, e o mais das vezes sem razão.”
Quanto àqueles que não eram brancos, não se concebia que manifestassem algo que não fosse uma enorme alegria.
Nesta fase só publicações de circulação muito restrita, como a revista “Economia & Finanças”, ou de carácter regional, como o “Jornal da Bairrada”, dão espaço a opiniões dissonantes nesta matéria, atitude que rapidamente lhes vai valer a acusação de “agressão ideológica reaccionária” por parte da Comissão Ad-Hoc para o “controlo da Imprensa, Rádio, Televisão, Teatro e Cinema”. Sofrerão também as severas penalizações que essa comissão, criada a 20 de Junho de 1974, na dependência da Junta de Salvação Nacional, atribuiu durante a sua existência: em Junho de 1974 foi imposta uma multa de 150 mil escudos à revista “Economia & Finanças”, o que corresponde à multa mais elevada  atribuída de Junho a Setembro de 1974 por esta comissão. A causa desta penalização foi “estar em presença de exemplos típicos de agressão ideológica reacionária”.
Em Agosto e Setembro de 1974, feita a ressalva a duas multas de 5 e 25 mil escudos atribuídas respectivamente a “O Raio” (ofensa a um membro do Conselho de Estado) e ao “Expresso” (notícia sobre a passagem forçada à reserva de 105 oficiais da Armada), todas as demais multas resultam de notícias sobre a descolonização. Ao “Bandarra” 150 mil escudos de multa por a comissão entender que este jornal colocava “em causa a legalidade do processo de descolonização”. Ao jornal “Resistência” multa de 100 mil escudos por colocar em causa “a isenção e o patriotismo das mais altas instâncias do regime vigente”.
A suspensão da publicação era outra das condenações atribuídas e que na prática comprometia a sobrevivência destes títulos: “Tempo Novo” suspensão de 60 dias por ter publicado “um artigo intitulado «Carta Aberta ao Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho» a propósito das negociações de Lusaca. A Comissão considera que o artigo contém ofensas ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, e ao citado oficial”. Opiniões dissonantes sobre a descolonização levaram também à suspensão do “Proletário Vermelho” (60 dias) e do “Jornal de Famalicão” (30 dias).
Não era a primeira vez que em Portugal se expulsavam jornalistas. O que mudara após Abril de 1974 é que agora nem em Portugal nem fora dele se ouviram quaisquer protestos.
No Verão de 1974, Portugal já não tinha exame prévio mas estava longe de ser um país sem coação sobre a pouca imprensa que questionava a verdade oficial e, sobretudo, os desejos dos governantes em matéria de descolonização. Mas o mundo que até Abril de 1974 condenara veementemente a censura vigente em Portugal mostrava agora uma silenciosa complacência com actos que até há alguns meses causavam indignação. Basta recordar que no final de Julho de 1974 é expulso de Moçambique o jornalista John Bruce Edlin. É-lhe também proibida qualquer tentativa de regresso. Porquê? Porque, dizem as autoridades, este jornalista fundamentava “a maior parte das suas notícias em boatos e em opiniões particulares, deturpando, assim, a verdadeira imagem da vida interna em Moçambique”.
Não era a primeira vez que em Portugal se expulsavam jornalistas. O que mudara após Abril de 1974 é que agora nem em Portugal nem fora dele se ouviram quaisquer protestos.

“Um grave problema de congestionamento”

Do ponto de vista informativo, os retornados enfrentarão vários muros de silêncio e preconceito. Mas se não forem brancos e sobretudo se a viagem dita de retorno não se fizer no sentido África-Europa então, tal como sucede com as pessoas que em Julho de 1974 fogem dos musseques de Luanda para o interior de Angola, não passam de uma breve e fugaz referência, no meio de extensos e exaltantes parágrafos sobre a descolonização. Assim: “Começou a registar-se ontem a debandada de centenas de comerciantes dos musseques, na medida em que as suas vidas e haveres passaram a correr perigo eminente a toda a hora” – escreve o Diário Popular, a 16 de Julho de 1974, numa referência igual na sua brevidade às que saem nos outros jornais nesse e nos dias seguintes.
Nos meses seguintes “os colonos”, “os fazendeiros que fogem por medo”, “os deslocados”, como então os designava a imprensa, chegarão às centenas de milhar. E contudo serão raríssimas as suas fotografias na imprensa portuguesa até, que em meados de 1975, os seus caixotes e os seus corpos deitados no chão do aeroporto da Portela os tornam incontornáveis.
Os cabo-verdianos, proprietários de muitos dos comércios nos musseques, tornam-se num alvo fácil para a violência que aí se instala. Mas não são os únicos e nem sequer o grupo mais numeroso. Este último é constituído por angolanos. Negros. Fogem com as famílias dos musseques e a sua presença na cidade do asfalto torna-se incontornável, sobretudo quando muitos deles, num movimento silencioso mas imparável, se instalam junto ao palácio do Governo. Em poucas horas o seu número cresce e já ocupam os largos e jardins vizinhos.
Silvino Silvério Marques foi empossado a 11 de Junho como Governador-Geral de Angola. Quer ele quer Henrique Soares de Melo, nomeado na mesma data, Governador-Geral de Moçambique, rapidamente constatarão não ter condições para o exercício desses cargos
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Para os tirar de Luanda aumenta-se o número de carreiras. Mas não só a resposta é insuficiente como muitos deles, num sinal das tensões étnicas instaladas, só aceitam ser transportados em veículos militares e conduzidos por militares brancos. E, como recorda o então tenente-coronel Gonçalves Ribeiro, que haveria de ser em 1975 o homem por trás da ponte aérea Luanda-Lisboa, quando não existiam transportes militares, caso dos troços de viagem que foram feitos de barco, houve que embarcar marinheiros da Armada nos barcos civis para que as famílias negras aceitassem também elas embarcar.
As mesmas desconfianças étnicas e tribais estarão também presentes quando, já em Setembro de 1974, acontece a fuga dos trabalhadores das roças do Uíge – bailundos na sua maioria – em direcção às suas terras no planalto central (2). Num tempo em que a linguagem dos jornalistas e políticos se enche de termos para designar os brancos então residentes em África – colonos, brancos, africanistas, europeus, ultramarinos, residentes, metropolitanos, minoria branca…. – os negros, apresentados sob o termo unificador “africanos”, estavam longe de ser uma entidade unitária.

“Vi morrer o meu maior amigo, ali assim ao meu lado”

Por fim, nesta leva dos primeiros retornados, temos aqueles, maioritariamente brancos, que rumam a Lisboa. Quem, no dia 12 de Agosto de 1974, abrisse o Diário de Notícias ficaria a saber que o Aeroporto da Portela estava a registar uma invulgar afluência de passageiros. Desta vez não eram mais cientistas e bailarinas dos então países de Leste que por cá estavam a desembarcar às dezenas nesse Verão. Estes passageiros provinham de Luanda e contam aos jornalistas o que os trouxe a Lisboa: “Vi morrer o meu maior amigo, ali assim ao meu lado. E o mesmo não me aconteceu por ter conseguido esconder-me”. “Não está tão mau como se diz” – afirmou uma estudante que declara ter vindo “por causa da confusão que reina no meio estudantil. Ficar para quê? Os liceus estão fechados”. Uma mãe explica: “Não, não foi por mim que vim, mas pelas crianças”.
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A reportagem do Diário de Notícias de 12 de Agosto de 1974 no aeroporto de Lisboa
Estas histórias nada têm de invulgar. Aliás, nas semanas e meses seguintes outras muito mais dramáticas se ouvirão. O que existe de invulgar nesta notícia de 12 de Agosto de 1974 é o facto de ela ser acompanhada por uma fotografia dos recém-chegados ao aeroporto da Portela e de os jornalistas os terem entrevistado. Nos meses seguintes “os colonos”, “os fazendeiros que fogem por medo”, “os deslocados”, como então os designava a imprensa, chegarão às centenas de milhar. E contudo serão raríssimas as suas fotografias na imprensa portuguesa até, que em meados de 1975, os seus caixotes e os seus corpos deitados no chão do aeroporto da Portela os tornam incontornáveis.
Mas voltemos a este Diário de Notícias de 12 de Agosto de 1974. Quem o lesse até ao fim ficaria a saber que, na véspera, “mil colonos”, maioritariamente provenientes de Moçambique, haviam chegado no paquete Infante D. Henrique. O surto grevista nos portos, caminhos-de-ferro, fábricas e empresas agrícolas de Moçambique, as manifestações cada vez mais exaltadas quer contra, quer a favor da independência, e o facto de tudo parecer encaminhar-se para o reconhecimento da FRELIMO como único interlocutor do Estado português são responsáveis pela decisão de muitos deles em embarcar.
Mas o que eles não sabem é que, ao mesmo tempo que pisam terra em Lisboa, outros em Moçambique vivem horas de terror: com os militares e parte da administração civil a retirar de zonas importantes do território, as populações de cidades como António Enes ficavam entregues a si mesmas.
Segundos os jornais, vindos não se sabe donde surgem grupos de saqueadores e o terror começa: “Foi um pânico brutal e desorientado que lançou para as estradas milhares de foragidos brancos, os mais ameaçados por uma vaga de ódio racial inconcebível há três meses nestas velhas terras de colonização portuguesa, mas explicável pela enorme disparidade entre o proletário negro e o pequeno burguês branco, confortavelmente instalado neste paraíso perdido” – escreve o Diário Popular de 13 de Agosto.
Uma vez chegados a Nampula, os refugiados atravessam a cidade fazendo soar as buzinas dos seus automóveis, empunhando cartazes em que apelam aos jornais de Moçambique para que “Digam a verdade!”. Exigem às autoridades que reponham a segurança para que possam voltar às suas casas e terras.
Mas nem o aparato da luta de classes transportado para as questões raciais consegue contornar o óbvio: entre aqueles que em carros, carroças e a pé fogem para Nampula, cidade onde os militares se mantinham, contam-se muitos negros e a quase totalidade dos asiáticos – paquistaneses, indianos e chineses –, comunidades muito presentes até então em António Enes graças ao comércio de caju e amendoim.
Uma vez chegados a Nampula, os refugiados atravessam a cidade fazendo soar as buzinas dos seus automóveis, empunhando cartazes em que apelam aos jornais de Moçambique para que “Digam a verdade!”. Exigem às autoridades que reponham a segurança para que possam voltar às suas casas e terras. Mas como muitos deles não tardarão a descobrir, a única viagem que os militares vão fazer é a que os trará a Lisboa. Deixar primeiro as suas casas e depois Moçambique é assim o percurso que muitos moçambicanos começam a cumprir. Como se fosse um destino.

Rapidamente o ambiente político degradou-se e começou a haver graves problemas de segurança
Dessa viagem, a que se chamará mais tarde “retorno de nacionais”, vamos tendo notícias não tanto porque elas sejam objecto de interesse jornalístico, mas sim porque, no meio dos extensos textos dedicados à problemática da descolonização, se refere que na Guiné há problemas no comércio porque os donos dos estabelecimentos – muitos deles libaneses – já deixaram o território, que em Luanda e Lourenço Marques não pára de aumentar a procura de bilhetes de avião e barco; que à excepção dos casos de doença e de viagens relacionadas com o “fomento da produção e da exportação”, foram suspensas quaisquer transferências cambiais ou que nos portos e aeroportos de Luanda e Lourenço Marques se vive “um grave problema de congestionamento”, tanto mais que em alguns casos começam a ser levantados entraves a esses embarques:
“Estivadores africanos do porto de Lourenço Marques recusaram-se ontem a carregar barcos de carga destinados a Lisboa com bens pertencentes a colonos brancos que regressam a Portugal. Segundo anunciaram, respondem assim  a um apelo lançado pela Frelimo no sentido dos residentes brancos permanecerem no território, ajudando ao seu desenvolvimento. Todavia na capital moçambicana a tensão aumentou nos últimos dias, devido a uma série de deflagrações (…) que devem ser obra de extremistas das direitas.” – informava a RTP do dia 21 de Junho de 1974.
O que pretendem embarcar estas pessoas? Bens que querem colocar em segurança para o que der e vier ou a panóplia habitual de objectos transportados nas viagens sazonais de reencontro com os familiares e de apresentação dos filhos aos parentes que tinham na então metrópole? Nas notícias não encontramos referências a esse assunto, mas o poder político e militar, esse, sabia bem o que podia acontecer e procurou antecipar-se.
Dois a oito anos de prisão é a pena em que incorrem todos aqueles que fora do estritamente previsto na lei promovam, executem ou de algum modo facilitem transferências superiores a 3.000$00 entre os diversos territórios nacionais. Na mesma pena incorrem os que pratiquem a compra ou venda de notas de outro território nacional.
Logo uma semana após o 25 de Abril saiu o decreto-lei o 181/74 que dificultava e penalizava as já de si difíceis transferências cambiais dos territórios ultramarinos para Lisboa. Quando se lê este decreto-lei (tal como o 189/74 que dias depois o corrige), constata-se que se reforça autoritariamente o novelo legislativo constituído pelos trinta decretos-lei, sete decretos, duas portarias e alguns avisos do Banco de Portugal que, em 1974, regiam o mercado de câmbios, a actividade bancária e o regime de transferências para o exterior (3).
Sobretudo estes dois decretos-lei revelam como a fuga de capitais que se procura estancar não é apenas, como mediaticamente se anunciava em Lisboa, a dos capitalistas que todos os dias os jornais garantiam estar a levar os seus bens para a Suíça, mas sim e muito particularmente a transferência de bens de qualquer natureza entre os territórios ultramarinos e entre estes e a metrópole.
Notas-de-Angola-1973-500-e-1000-00
O dinheiro deixou de poder ser transferido para a Metrópole
Dois a oito anos de prisão é a pena em que incorrem todos aqueles que fora do estritamente previsto na lei promovam, executem ou de algum modo facilitem transferências superiores a 3.000$00 entre os diversos territórios nacionais. Na mesma pena incorrem os que pratiquem a compra ou venda de notas de outro território nacional. É também muito dificultada a exportação ou saída por qualquer forma, para outro território nacional, de notas, moedas metálicas, divisas, ouro, prata, outros metais e pedras preciosas, títulos de crédito ou outros valores, nomeadamente antiguidades, quadros e objectos de arte. Mesmo a Lotaria começa a ser encarada com suspeição pelas autoridades, pois os prémios dos bilhetes comprados em Angola e Moçambique eram garantidos em Lisboa, naturalmente em escudos.
Depois de o sistema fiscal e aduaneiro do Estado Novo os ter pressionado a investir nos territórios onde residiam, os portugueses do Ultramar ficavam, desde Maio de 1974, reféns desses bens que tinham adquirido. É que mesmo que os conseguissem vender isso de nada lhes serviria, pois não poderiam trazer consigo quaisquer proventos.

“Poderão pois estar tranquilos…” – até quando?

O voluntarismo dos decretos-lei 181/74 e 189/74, tal como as declarações enfáticas que os militares e responsáveis políticos produzem no Verão de 1974 sobre a sem razão das preocupações manifestadas pelos residentes nos territórios ultramarinos, são uma espécie de síndroma do dia seguinte que frequentemente se instala após os golpes de Estado.
Num país que desenvolvia operações em três territórios, para mais situados num outro continente, um Estado-Maior não pode ir para casa pois entretanto há homens que morrem, outros que são feridos, há transportes que têm de ser realizados, abastecimentos a garantir…
Os golpistas e os revolucionários têm o arrojo de enfrentar as situações mas quando, passados os momentos de euforia, lhes cai em cima o imenso peso do quotidiano, exigem que o povo se mantenha tranquilamente suspenso à espera que eles decidam, aprendam e resolvam tudo aquilo que de essencial subestimaram antes de, num ímpeto, terem querido mudar a História.
Mas como eles e o país aprenderão de forma dolorosa, os golpes de estado não acontecem em “países em branco” e as revoluções não se fazem em “copos de água”. Isso mesmo explicou, logo a 25 de Abril de 1974, o general Pedro Cardoso, um dos militares presentes no Estado-Maior do Exército, perante a ordem aí acabada de chegar proveniente do quartel-general do MFA, na Pontinha: quem estivesse com a revolução ficava onde estava, no caso contrário iria para casa. (4) Num país que desenvolvia operações em três territórios, para mais situados num outro continente, um Estado-Maior não pode ir para casa pois entretanto há homens que morrem, outros que são feridos, há transportes que têm de ser realizados, abastecimentos a garantir…
Neste contexto, os retornados vão ser um enorme embaraço, quase um estorvo, para umas Forças Armadas profundamente divididas sobre o destino do Ultramar, mas unânimes na disposição de fazerem o que for preciso para defender a sua imagem.
Jornal Luta Popular_thumb[4]
L
uta Popular, o jornal do MRPP que era dirigido por Saldanha Sanches
Assim, enquanto em África membros das Forças Armadas Portugueses, à revelia do Governo, do Presidente da República ou da hierarquia das Forças Armadas, estabelecem contactos directos com vista à entrega de armas, aquartelamentos e informações à FRELIMO e ao PAIGC e enviam para Lisboa telegramas onde, com mais ou menos variações, se lia “Ou assinam os acordos de paz, ou rendemo-nos todos”, a Junta de Salvação Nacional ordenava a prisão de um jovem civil dirigente do MRPP, Saldanha Sanches, por este ter apelado no jornal do seu partido à deserção com armas. Ou determinava a suspensão das reportagens de Roby Amorim na Guiné, que relatavam a decisão de vários oficiais das Forças Armadas Portuguesas de entregar aquartelamentos ao PAIGC, isto muito antes da independência e numa fase em que as mais altas patentes militares e o Governo mantinham negociações com aquele movimento.
No Verão de 1974 já não estavam tranquilos nem os africanos, nem os europeus. Nem os civis, nem os militares. E em diversos pontos de África estava a começar o que haveria de ser o maior êxodo de portugueses: entre Maio e Junho de 1974, 5 mil portugueses deixaram Moçambique e 9 mil partiram de Angola. Nos dois meses seguintes a TAP terá transportado entre Luanda e Lisboa 35 mil passageiros.
Mas, alheios aos considerandos dos jornalistas, à censura dos políticos e ao embaraço dos militares, os factos corriam. E corriam de modo a que em Portugal, África e Timor os acontecimentos tinham ultrapassado há muito a Proclamação da Junta de Salvação Nacional (JSN) lida por Spínola às 1h 30m do dia 26 de Abril de 1974, proclamação cujo primeiro ponto garantia que a JSN “assume o compromisso de garantir a sobrevivência da Nação como Pátria soberana no seu todo pluricontinental”.
Por essa altura, em África, já não passavam de letra morta as garantias dadas por Spínola quando a 11 de Junho dera posse aos novos governadores de Angola e Moçambique, Silvino Silvério Marques e Henrique Soares de Melo:
“Poderão pois estar tranquilos os africanos que se mantiveram neutros, porque não lhes será negado, por essa razão, o direito de optar. Poderão estar tranquilos os africanos que se nos confiaram e ao nosso lado combateram, tendo já feito a sua opção. E poderão estar tranquilos os europeus que chamam à África a sua terra e ali se sentem cidadãos como quaisquer outros; não os abandonaremos na cobarde procura do fácil e na demagógica busca da popularidade. Poderão também estar tranquilos quantos vêm lutando pelo direito à autodeterminação, pois que a sua vontade será respeitada pela vontade das maiorias. A todos garantiremos que nessa hora grande serão chamados, sem excepção, a dar o seu voto. Essa hora já não vem longe, mas até lá teremos de percorrer aceleradamente o caminho que devíamos ter percorrido nos últimos 50 anos. Assim nos entendam e nos ajudem o mundo, e os portugueses de sã consciência e recta intenção.”
No Verão de 1974 já não estavam tranquilos nem os africanos, nem os europeus. Nem os civis, nem os militares. E em diversos pontos de África estava a começar o que haveria de ser o maior êxodo de portugueses: entre Maio e Junho de 1974, 5 mil portugueses deixaram Moçambique e 9 mil partiram de Angola. Nos dois meses seguintes a TAP terá transportado entre Luanda e Lisboa 35 mil passageiros. Nesse mesmo período, 40 mil pessoas deslocaram-se dos musseques para o interior de Angola e mais de mil cabo-verdeanos protagonizaram a primeira ponte aérea do retorno…(5)
E sobretudo, no Verão de 1974, já ninguém em Portugal pode garantir tranquilidade àqueles que por agora ainda são designados como colonos, brancos, africanistas, europeus, ultramarinos, residentes e metropolitanos, mesmo quando são negros, mulatos, asiáticos ou brancos que nunca tinham saído de África.
Mais tarde vão chamar-lhes retornados. Como se estivessem sempre a voltar.

NOTAS
(1) Estudos Gerais da Arrábida, A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA, Painel dedicado a Cabo Verde
(2) Gonçalves Ribeiro, “A vertigem da Descolonização – da agonia do exôdo à cidadania plena”, Editorial Inquérito, 2002.
(3) A quantificação sobre o quadro legislativo que até ao 25 de Abril de 1974 regia as transferências do então Ultramar e Metrópole é feita por Ângelo Soares membro da AEMO – Associação dos Espoliados de Moçambique.(4) A expressão “revolução a fazer-se num copo de água” é usada pelo general Pedro Cardoso no testemunho que deu a Manuel Amaro Bernardo, in Memórias da Revolução”, Prefácio, 2004
(5) “A Descolonização Portuguesa. Aproximação a um Estudo” vol. II, Instituto Amaro da Costa, 1982 e “A vertigem da Descolonização – da agonia do exôdo à cidadania plena”, Editorial Inquérito, 2002, são a par da imprensa a fonte utilizada para quantificar o número de deslocados.


Cronologia 1974-2002: Das independências ao fim da guerra em Moçambique e Angola

Depois da Revolução dos Cravos, sucedem-se as independências das colónias portuguesas. Logo em 1975, os movimentos angolanos iniciam um conflito armado pelo controlo do país. A guerra civil dura até o ano de 2002.

Cerimónia realizada em Madina de Boé após o reconhecimento por Portugal da independência da Guiné-Bissau

10 de setembro de 1974

Independência da Guiné-Bissau
O acordo de Portugal com o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) sobre a independência da Guiné-Bissau é ratificado no dia 10 de setembro de 1974. A Guiné-Bissau passa a ser a primeira colónia portuguesa em África que conquistou a independência. Os portugueses começam então a abandonar a capital, Bissau. Após a independência, e até 1980, a Guiné-Bissau e Cabo Verde passam a ser dirigidos por um único partido, o PAIGC.

28 de setembro de 1974

Tentativa de golpe
A 28 de setembro, o Movimento das Forças Armadas (MFA) proíbe uma manifestação de apoio ao Presidente António de Spínola. A tentativa de golpe de Estado levada a cabo por forças próximas ao general Spínola e a rejeição da política do MFA não dá frutos. Barricadas de populares cortam os acessos a Lisboa. Na sequência do golpe falhado, Spínola apresenta a sua demissão. O seu sucessor é Francisco da Costa Gomes, membro da Junta de Salvação Nacional e chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas desde o 25 de abril de 1974. A influência comunista cresce cada vez mais no país.

Barricadas de populares e de militares após os acontecimentos do 28 de setembro de 1974

Janeiro de 1975

Acordo de Alvor
Decorre de 10 a 15 de janeiro no Alvor, Algarve, uma cimeira para debater a independência de Angola. O Acordo de Alvor é assinado no dia 15 de janeiro entre o Governo português e os três principais movimentos de libertação angolanos: Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e estabelece os parâmetros para a partilha do poder na antiga colónia. O dia 11 de novembro é estabelecido como a data da independência do país. No entanto, pouco depois da assinatura do documento, os movimentos iniciam um conflito armado pelo controlo do país. Começava, assim, a guerra civil em Angola.

Delegados portugueses e angolanos presentes nos encontros de Alvor: Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal (segundo da esq.), Jonas Savimbi da UNITA (terceiro da esq.), Holden Roberto da FNLA (quarto da esq.), Costa Gomes, Presidente de Portugal (terceiro da dir.) e Agostinho Neto do MPLA (segundo da dir.)

25 de abril de 1975

Primeiras eleições livres em Portugal após 50 anos
Um ano depois da Revolução dos Cravos, realizam-se eleições para a Assembleia Constituinte. São as primeiras eleições livres com sufrágio universal realizadas nos últimos 50 anos em Portugal. O grande vencedor foi o Partido Socialista (PS), que conquistou quase 38% dos votos (116 assentos), seguido do Partido Popular Democrático (PPD, que mais tarde passaria a designar-se Partido Social Democrata, PSD) com pouco mais de 26% dos votos (81 assentos) e do Partido Comunista Português (PCP), que conseguiu perto de 12,5% dos votos (30 assentos). No mês seguinte, os conflitos entre o PS e o PCP agravam-se e a extrema-esquerda ocupa a Rádio Renascença, emissora católica portuguesa.

Mesas de voto em Lisboa. As eleições para a Assembleia Constituinte tiveram lugar a 25 de abril 1975

25 de junho de 1975

Independência de Moçambique
Moçambique torna-se independente de Portugal em 25 de junho de 1975, depois de mais de uma década de guerra de libertação. A Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) forma o primeiro Governo, dirigido por Samora Machel, o primeiro Presidente do país. O novo Executivo leva a cabo uma série de medidas para restituir ao povo moçambicano os direitos que lhe tinham sido negados pelos portugueses durante a época colonial. São também criadas várias empresas estatais. Em Angola, a guerra aumenta de intensidade e faz crescer o fluxo de “retornados”, nome dado aos residentes nas antigas colónias que voltaram para Portugal. Nas antigas colónias estavam radicados cerca de 600 mil portugueses.

À meia-noite do dia 25 de junho de 1975, soldados da FRELIMO hastearam a nova bandeira nacional na então capital Lourenço Marques (atual Maputo)

Julho de 1975

“Verão Quente” em Portugal
Em Portugal assiste-se a um processo de contestação ao Governo e a uma disputa aguerrida pelo poder político-militar. Assaltos e ataques bombistas contra sedes dos partidos marxistas-leninistas marcam os meses de julho e agosto. A crise governamental levou à queda do Executivo e, posteriormente, à demissão do primeiro-ministro Vasco Gonçalves. Este período de tensão em Portugal ficou conhecido como “Verão Quente” e culminou com as movimentações militares de 25 de novembro. O país esteve à beira de uma guerra civil.

Os acontecimentos ocorridos em 1975 em Portugal quase levaram a uma guerra

5 de julho de 1975

Independência de Cabo Verde
A independência de Cabo Verde é proclamada no dia 5 de julho de 1975. O primeiro Presidente da República do país é Aristides Pereira, que juntamente com Amílcar Cabral fundou o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

Aristides Pereira a prestar juramento como Presidente da República de Cabo Verde

12 de julho de 1975

Independência de São Tomé e Príncipe
Uma semana depois da independência de Cabo Verde, a 12 de julho, também São Tomé e Príncipe se torna independente. Manuel Pinto da Costa, que desempenhou um papel importante na luta pela independência do regime colonial português, assume a presidência do país.

Manuel Pinto da Costa foi o primeiro Presidente de São Tomé e Príncipe entre 1975 e 1991. Vinte anos mais tarde, em 2011 (foto), vence as eleições e volta à presidência

11 de novembro de 1975

Independência de Angola
No dia 11, em Luanda, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) proclama a independência da República Popular de Angola. Agostinho Neto assume a presidência do país. Portugal reconhece o Governo do MPLA. Em Nova Lisboa (atual Huambo), a FNLA e a UNITA também proclamam a República Democrática de Angola, que a comunidade internacional nunca virá a reconhecer. Continua a guerra civil angolana: UNITA e FNLA lutam com o apoio da África do Sul contra o Governo do MPLA, que tem o apoio de soldados cubanos. É uma das guerras mais sangrentas durante o período da Guerra Fria, que ficou marcado pelo conflito entre os EUA e os seus aliados ocidentais, que apoiaram a UNITA e FNLA, e a União Soviética e os seu aliados orientais, que apoiaram o MPLA. Devido às riquezas naturais e potencialidades económicas de Angola, o processo de descolonização deste território foi o mais longo entre todas as colónias portuguesas.

Cartaz do MPLA representando Agostinho Neto e o povo angolano

28 de novembro de 1975

FRETILIN proclama independência de Timor
A Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN) proclama a independência do território em 28 de novembro de 1975. Três dias depois, o território, que tinha sido a mais esquecida das colónias portuguesas, é invadido pela Indonésia. O Governo indonésia temia um país vizinho comunista, já que a FRETILIN era de inspiração marxista. Depois do golpe militar no ano de 1965, o regime do General Suharto já tinha massacrado entre 500 mil e dois milhões indonésios para eliminar fisicamente os movimentos comunistas e democratas. A seguir à invasão indonésia em 1975, a FRETILIN refugia-se então nas montanhas, onde continua a resistência armada, enquanto as tropas portuguesas se refugiam na ilha de Ataúro. Em 1976, o governo de Jacarta anuncia que Timor-Leste será integrado na Indonésia. “Timor Timur” passa a ser a sua 27ª província. Timor foi considerado pela ONU como território português até 1999. Nesse ano, a maioria dos timorenses votou pela independência da Indonésia no referendo realizado por Jacarta. Como retaliação do resultado, forças de oposição à independência e grupos paramilitares ligados ao Governo de Jakarta espalharam a violência e a morte pela região. De 1974 a 1999 morreram pelo menos 102 mil pessoas por causa da ocupação pela Indonésia. Timor-Leste só se tornaria um país independente em 20 de maio de 2002.

Comício da Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN) em Timor-Leste (1974)

1976

Guerra civil em Moçambique
Começa a guerra civil entre a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), que se prolongaria até 1992. Além de paralisar o país em termos económicos e sociais, o conflito de 16 anos provocou a morte um milhão de pessoas e fez mais de três milhões de refugiados. Durante o conflito, travado em plena Guerra Fria, a FRELIMO é apoiada pela União Soviética, enquanto a RENAMO conta com a ajuda do regime branco da Rodésia e, a partir de 1980, também da África do Sul.

Soldados zimbabueanos a patrulhar a linha ferroviária do Corredor da Beira durante a guerra civil (foto de 1987)

1992

Fim da guerra civil em Moçambique
Com a mediação da Comunidade de Sant’Egídio, organização religiosa fundada em Itália, a 4 de outubro é assinado, em Roma, Itália, o Acordo Geral de Paz entre o Governo moçambicano e a RENAMO, pondo fim a 16 anos de guerra civil. O conflito deixou mais de um milhão de mortos e transformou país num dos mais pobres do mundo. Em 1990 já tinha sido aprovada a revisão da Constituição que introduzia o sistema multipartidário em Moçambique. A FRELIMO punha de parte a ideologia marxista-leninista.

Joaquim Chissano (FRELIMO, à esq.) e Afonso Dhlakama (RENAMO, à dir.) apertaram as mãos em Roma no dia 4 de outubro de 1992

2002

Fim da guerra civil em Angola
No dia 4 de abril de 2002 a paz chegou a Angola com a assinatura do acordo de Luanda entre o governo do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) MPLA e a União Nacional pela Independência Total de Angola (UNITA). As duas formações políticas com mais influência no país pousaram as armas, pondo, assim, fim a 27 anos de uma guerra civil que causou pelo menos 500 mil mortos e mais de dois milhões de refugiados. A seguir à paz, Angola viveu um "boom" económico graças ao petróleo, atingindo um crescimento de mais de 20 % em 2005 e em 2007. Mas apesar deste crescimento, muitos angolanos continuam até hoje a viver na pobreza.

General Armando da Cruz Neto (à esq.) das Forças Armadas de Angola e general Abreu Muengo Ukwachitembo "Kamorteiro" da UNITA na assinatura do acordo de paz em Luanda a 4 de abril de 2002
BIBLIOGRAFIA:
Afonso, Aniceto/Gomes, Carlos de Matos, Os Anos da Guerra Colonial - 1961.1975, Lisboa, Quidnovi, 2010.
Cervelló, Josep Sánchez, A Revolução Portuguesa e a sua Influência na Transição Espanhola (1961-1976), Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.
Marques, A. H. Oliveira, Breve História de Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 2006.
Rodrigues, António Simões (coordenador), História de Portugal em Datas, Lisboa, Temas e Debates, 2000 (3ª edição).

Agradecimento especial:
Casa Comum (Fundação Mário Soares)

MAIS SOBRE ESTE ASSUNTO




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Linha Aérea e outros voos - A PONTE AÉREA de 1975


Os dramáticos dias do início da descolonização portuguesa




Foi o maior êxodo da História de Portugal



Começou em 17 de Julho de 1975 e acabou a 3 de Novembro, desse mesmo ano



Um episódio.


    Boeing B 747



Nota: 
…Em 1974, uma revolução em Lisboa apanha de surpresa centenas de milhares de portugueses que vivem em Angola. A partir desse dia inicia-se a derrocada imparável de uma sociedade inteira que, tal como um navio a afundar-se, está condenada à destruição e à ruína. Em escassos meses, trezentos mil portugueses são obrigados a largar tudo e a fugir, embarcando numa ponte aérea e marítima que marca o maior êxodo da história deste povo. Para trás ficam as suas casas, os carros e até os animais de estimação. Empresas, fábricas, comércio e fazendas são abandonados enquanto Luanda, a capital da jóia da coroa do império português, é abalada por uma guerra civil que alastra ao resto do território angolano. 

Excerto do livro de Tiago Rebelo: “O Último Ano em Luanda”



Nota:
Terão saído de Angola para Portugal cerca de 305 mil pessoas entre Maio de 74 e Novembro de 75.
 “Durante a ponte aérea, não havia programação de voos os aviões chegavam, abasteciam-se e partiam, foram períodos de uma tensão a raiar os limites de ser suportada”.
Gonçalves Ribeiro, Alto-Comissário para os Refugiados.
Eduarda Ferreira in: Jornal de Notícias.


_____________________________________ 
 


28 de Agosto de 1975

 


Nessa noite apresentei-me, como Co-Piloto de Boeing 747, nas Operações da TAP em Lisboa para fazer mais um voo da Ponte Aérea.


Neste caso seria Lisboa / Luanda / Nova Lisboa / Luanda / Lisboa

Já à saída de Lisboa se notava um ambiente estranho entre a tripulação (reforçada). Havia um grupo que parecia saber de coisas que viriam a acontecer e mais ninguém sabia.

Os outros interrogavam-se, notando a ligação ao Partido Comunista daquele grupo sabedor de coisas...

A pouco e pouco, até Luanda, percebeu-se do que se tratava, sem que os 2 Comandantes tivessem sido avisados da alteração “programada“, à sua revelia, do propósito inicial do voo a Nova Lisboa : recolher civis Portugueses e trazê-los para Lisboa.


E o que se tramava era nem mais nem menos isto:


- Deixar em terra, em Nova Lisboa, os Portugueses, ao abandono.

- Levar dali para Luanda os militares do MPLA, em perigo dado o apertar do cerco à cidade pela UNITA.

-  Regressar a Lisboa num voo comercial normal e não de Refugiados...


Cockpit do B747  
                                                                


Quando finalmente, ainda em voo para Luanda, toda a tripulação ficou a saber do que se tramava algures em Lisboa, Luanda e no próprio avião, ficou decidido, pela maioria em mini-plenários, (plenários a bordo, em pleno voo, dá para acreditar?...) que o voo se faria integralmente como programado:

- Em Nova Lisboa só embarcariam Portugueses que viriam até Lisboa connosco!




   Luanda anos 60

Em Luanda, durante o reabastecimento a caminho de Nova Lisboa, o chefe de escala, conotado com o PC, tentou alterar as coisas tendo no entanto sido avisado das intenções da maioria da tripulação.

À chegada a Nova Lisboa, ainda do ar, podia ver-se uma longa fila de cerca de 400 pessoas fora da Aerogare prontas a embarcar, há 3 dias a viver ali, mais ou menos na rua.
 
Quando a porta do avião se abriu e aquela brisa húmida e muito quente se sentiu, entrou uma delegação TAP, ad-hoc, local (manutenção e placa) a informar que se os MPLA’s embarcassem em vez dos Portugueses, (o próprio MPLA estaria avisado que o voo seria para os recolher…) todos os funcionários TAP embarcariam também, quanto mais não fosse pelo receio de represálias pela UNITA.
 
Embarcaram os portugueses… em estado miserável, há três dias sem comida.

 
Crianças e bebés comiam latas de atum e pão seco.
 
Os adultos só pão seco molhado em água.
 
 
Todos exibiam um tom de pele doentio cor de folha de tabaco.
  

Nota: 
…Em Nova Lisboa a situação era tremenda. Havia uma espécie de grande hangar e as pessoas chegavam das mais variadas formas, carregadas de malas. Como não as podiam levar — havia um limite de 30 kg por passageiro — havia uma montanha incrível de bagagem deixada para trás. Não havia condições nenhumas, a sanita era um antigo avião de campanha completamente recuperado que um oficial qualquer tinha resolvido pôr ali como monumento. Imagine-se, um avião que tinha andado na guerra!
"Quem controlava eram os guerrilheiros da Unita, que tinham um aspecto inacreditável. A tropa já se tinha vindo embora. Assim tínhamos de discutir horas com os UNITAS que queriam entrar nos nossos aviões para ir lá buscar pessoas, e assegurar que eles não inutilizassem o avião. Era essa a minha maior preocupação quando estava no solo.”
 “Chegou a uma altura em que a tropa portuguesa já se tinha vindo quase toda embora e mesmo em Luanda as pessoas só se sentiam seguras no aeroporto. Chegámos a ter lá 5000, numa caserna para 500 homens.”
Gonçalves Ribeiro, mais tarde Alto-Comissário para os Refugiados, o nome que todos apontam como coordenador da ponte aérea que em três meses e meio transportou quase meio milhão de pessoas de Nova Lisboa e Luanda para o aeroporto da Portela.  
por Fernanda Câncio
Do Blogue: “No tempo dos Araújos

Já em Luanda, em transito para Lisboa, pelo grande empenho do chefe de escala da TAP, ficou decidido que o voo para Lisboa seria com os passagiros normais, pagantes e os de Nova Lisboa seriam simplesmente adicionados à enorme desumanidade que era naqueles dias o caos naquele Aeroporto de Luanda.
  


  


Nota: 
No aeroporto de Luanda, milhares de pessoas aguardavam, nas piores condições de salubridade, um lugar nos aviões Jumbo da TAP, que transportavam a um ritmo de mais de mil pessoas por dia as cerca de 250 mil que queriam regressar.
Rui Ochôa, Expresso, 26 de Julho de 2009 






  



E enquanto o avião era reabastecido e limpo, os espoliados embarcados em Nova Lisboa foram desembarcados, com o falso pretexto de que o avião tinha de ser reabastecido sem passageiros.

 
Essas 400 pessoas foram despejadas na aerogare, ao abandono, após 3 dias atrozes de desespero em Nova Lisboa. Iam começar nova odisseia. Mas desta vez a um passo da liberdade prometida mas agora integrados numa luta maior de acrescida competição por um lugar a bordo de um qualquer avião.

 
 

E, claro, na hora do embarque lá entraram outras gentes, com muito melhor ar, os passageiros pagantes do voo regular para Lisboa.

 

Uma meia hora depois e já com o avião praticamente cheio, os nossos amigos de Nova Lisboa, desembarcados à força naquele Inferno, eles que já vinham de outra muito amarga experiência, deram-se conta de que tinham sido enganados e agiram rapidamente num misto de medo e fúria.


Em pânico, invadiram expontâneamente a placa a correr por ali fora atabalhoadamente direitos ao avião acossados pelo medo de tendo já escapado ao terror de que se tinham livrado, estarem agora irremediavelmente condenados a no mínimo… apodrecer na Aerogare de Luanda sem comida, água, cuidados de saúde e completamente indefesos.


Os pára-quedistas Portugueses de serviço junto ao avião, de G3 apontadas a eles, limitaram-se a ficar extáticos, virados para a Aerogare, e a ser ultrapassados por todos os desgraçados que quisessem.

 

Num instante um mar de gente em fúria, filhos e bagens nas mãos, subindo por todas as escadas possíveis, entrou pelo avião dentro, sem controlo. Em segurança, de novo!
 
 

E os que não iam conseguindo entrar porque todas as escadas estavam a abarrotar de gente desesperada, ficaram a toda a volta do avião.
 

Vários firmemente agarrados ao trem de aterragem para não serem recambiados, alguns com filhos muito pequenos seguros pelo outro braço, muitos a tentar subir as escadas atafulhadas de gente, todos aos gritos, todos em lágrimas e a tripulação dentro do avião, junto às portas, a lutar com a impossibilidade de gerir aquele inesperado drama para o qual ninguém estava preparado, por muito que se julgasse capaz.
 

Entretanto, no upper-deck do Boeing 747 CS-TJB, no dia 29 de Agosto de 1975, a meio da tarde, a situação era calma… “ foram vocês que arranjaram isto, agora desenrasquem-se “.

 

Para mim foi demais…
 

Fui lá para baixo tentar fazer qualquer coisa. A tripulação de cabine mais experiente já tinha conseguido fechar a porta da frente. Agora a grande confusão era na porta do meio.
 

Com intenso dramatismo, todos aos gritos, todos fora de controlo (a tripulação já tinha uma noite de serviço e 12 a 14 horas de trabalho) íamos puxando para dentro os que estavam meio cá meio lá, tentando manter os outros de fora para se conseguir fechar também esta porta.
 

Um velho no topo da escada socorre-se de mim (eu era o que tinha ali, no momento, mais galões nos ombros) e grita-me repetidas vezes:
 

- Os meus filhos!!! Os meus filhos!!!
 

- Aonde é que eles estão?
 

Perguntei-lhe tentando gritar mais alto do que todos os outros 50 ou 60 que nos rodeavam dentro e fora...
 

- Aí dentro !!!
 

Eram 3. Entre pequenos e mais velhos. E estavam mesmo ao meu lado…
 

Consigo sair a custo do avião e já na escada, começo a puxá-lo para dentro por um braço enquanto todos os outros aproveitam a boleia e forçam a entrada, escada acima, contrariando a tripulação de cabina que, atrás de mim, tenta impedir aquele caos, empurrando toda a gente para fora.
 

E no meio do mais fantástico puxa-empurra, desesperado, tudo aos gritos, tudo em lágrimas, todos com os mais dramáticos e irrecusáveis argumentos a pedir para entrar, não sei quando, às tantas, consegui ouvir alguém gritar, do chão:

 

- A ESCADA VAI CAIR!!!

 


O excesso de peso e as grandes oscilações faziam com que os apoios hidráulicos que elevavam a escada à grande altura da porta do Boeing 747 estivessem já curvos e bamboleantes.
 

A base da escada, junto à porta do avião, já estava uns bons centímetros abaixo do nível da porta.
 

Deu-se então uma luta final realmente titânica para conseguir fechar aquela porta, ela que ainda por cima fecha de fora para dentro... tentando convencer as pessoas no topo da escada do perigo que todos nós corríamos.
 

Fechada a porta conseguimos reduzir o nosso drama só ao interior daquela nave de loucos.

 

Isolado o avião, restava avaliar a situação e arranjar uma solução.

 

 

No chão, à volta do avião, haveria 100 a 200 homens mulheres e crianças e a bordo do nosso Boeing B 747 havia cerca de 600… entre os originários de Nova Lisboa e passageiros embarcados em Luanda.



O que se passava no exterior com tantas pessoas desesperadas, com tantas crianças violentamente expostas a este drama, deixou de nos preocupar.
 

O drama e a insegurança estabelecida dentro do avião eram-nos prioritários agora. 






Todos se achavam no direito de seguir viagem para Lisboa.
 

Os argumentos eram os mais variados.
 

Havia quem, bem trajado e com ar saudável, acabado de sair de sua casa em Luanda, mostrasse um Rx para uma operação urgente. Havia famílias subitamente separadas, dentro e fora do avião, pais e filhos separados por uma simples porta, impenetrável.
 

Havia enfim um sem número de problemas reais ou fictícios e nenhum critério ou orientação para começar, sequer, a solucionar aquilo: o avião só podia transportar legalmente 400 passageiros e mais os cerca de 36 tripulantes, (tripulação reforçada) além dos dois ou três representantes do IARN, organismo Estatal de Apoio aos Refugiados Nacionais que seguiam em todos os voos da Ponte Aérea.
 

Não me lembro de nenhuma acção de apoio, nesta situação, destes mesmos elementos, supostamente de apoio. Estavam sentados no lugar certo e por ali ficaram…
 

Havia também um garrido grupo de 25 bem arranjadas prostitutas de Luanda.

 

Nesta tremenda confusão, uma passageira, muito bem vestida, obviamente originária de Luanda e também desesperada por se ver ameaçada de ser devolvida ao Inferno se fosse desembarcada, agarrou a mão de uma muito jovem assistente de bordo da TAP que passava, abriu a carteira, tirou de dentro dela uma pequena pistola de canos cromados, punho em madrepérola, apontou-a à sua própria cabeça e disse calmamente à apavorada assistente:
 

- Olhe menina, se eu não for para Lisboa, mato-me aqui mesmo!
 
 

Talvez a melhor imagem do desespero das pessoas, melhor ou pior vestidas, naqueles dias...
 

É claro que a jovem Assistente apareceu no upper-deck em perfeito estado de histerismo.
 

Convém lembrar que entretanto já se tinham passado mais de 14 horas desde a apresentação da tripulação em Lisboa, por volta da meia-noite anterior…
 

E perante a inoperância da escala de Luanda, propositada, e da falta de soluções dos mais altos responsáveis a bordo, dois elementos da tripulação resolveram, por sua alta recreação, meter mãos à obra e começaram intermináveis viagens entre o avião e a Aerogare dialogando passageiro a passageiro para avaliar das verdadeiras e inadiáveis razões que cada um teria para seguir mesmo naquele voo.

 

Foram um Técnico de Voo e um Comissário de Bordo:

 
 

Não me lembro do nome do Técnico de Voo, mas sei que era o pai de uma funcionária jovem e bonita da Operações de Voo da TAP. O Comissário era o C/B Duarte André.

 

  Imagem meramente ilustrativa
    


Umas 5 horas depois... com cerca de 8 horas totais de escala no Aeroporto de Luanda, lá conseguimos descolar.

440 pessoas a bordo.

À saída de Luanda a tripulação já levava, talvez,17 horas de trabalho. Naquelas condições.



                  


O voo decorreu sem mais incidente algum.

 
Aterrámos em Lisboa ao fim de 26 longas, atribuladas e inacreditáveis horas de trabalho, seguido. 


Alguns de nós com a consciência tranquila.

Muito tranquila...



 




  




E para os nossos passageiros de Nova Lisboa, de retorno à Pátria, como aconteceu a tantos outros, foram estas as melhores condições que se lhe ofereceram:

"Retornados" no Aeroporto de Lisboa, 1975




Quanto a mim, quando cheguei a casa, sentei-me na sala, exausto, contei a história e desatei a chorar. Descontrolado.

Muito provavelmente de cansaço. E outras coisas… 



Depois de 26 horas de trabalho contínuo.
Um total de 15h40 de voo.
Sendo 9h30 de voo nocturno, durante duas noites consecutivas.

Duas escalas em Luanda com um total de cerca de 10 horas no chão
Sempre em serviço, embora com tripulação reforçada.
Fizémos 4 aterragens.

 
 

O voo foi efectuado no Boeing B 747 matriculado CS-TJB.
Diários de Navegação nºs 9/31 a 9/34.




Junta Governativa de Angola. 
Da esquerda para a direita: Capião de Mar e Guerra Leonel Cardoso, Brigadeiro Altino de Magalhães, Almirante Rosa Coutinho, Cororel Pil. Av. Silva Cardoso e Major Emílio Silva . (foto a Vertigem da Descolonização, General Gonçalves Ribeiro)
 MPLA - FNLA - UNITA
 "Logo após ter iniciado o exercício das novas funções, uma das primeiras medidas que tomei foi determinar ao SIM (Serviço de Informação Militar), onde uma boa parte dos elementos da antiga DGS/PIDE se tinha integrado por ordem da Junta de Salvação Nacional, que pretendia informações detalhadas sobre atitudes inconvenientes que ocorressem em qualquer parte do território de Angola, levadas a efeito por elementos afectos aos movimentos de libertação.
Passei assim a dispor de um relatório semanal onde constavam as prepotências e actos de violência cometidos um pouco por toda a parte. E curioso notar, à semelhança do que ocorria em Luanda, também pelo restante território, o movimento que mais infracções cometia, superando mesmo os outros dois juntos, era o MPLA".
 "Considerando que em 25 de Abril este movimento era o que se encontrava em situação mais difícil, o rápido incremento da sua capacidade de intervenção deveu-se essencialmente aos seguintes factores: à determinação, desde a primeira hora, de alguns responsáveis políticos nacionais e elementos do MFA, reabilitar o MPLA, à adesão às FAPLA dos militares africanos do nosso Exército que iam sendo desmobilizados e ao apoio dado por toda a estrutura do MFA em Angola incluindo a CCPA, (Comissão Coordenadora do Programa de Angola) onde a partir dos primeiros dias de Fevereiro foi notória a presença das principais figuras do MPLA em consecutivas reuniões.
 Estas atitudes, muitas delas conduzidas dentro do palácio, provocaram uma reacção natural dos outros movimentos, afirmando que o MFA continuava a dar apoio e protecção ao MPLA como no tempo do Rosa Coutinho e, agora, mais abertamente. Fui obrigado a intervir e tive conhecimento de que, embora esporadicamente, os outros dois movimentos também foram convidados a reunir-se na CCPA para discutir problemas do processo de descolonização.
Mas enquanto a presença de elementos da FNLA ou da UNITA era objecto dum convite expresso, os elementos do MPLA limitavam-se a aparecer e a ficar por ali como se fizessem parte da própria CCPA. Esta foi uma das questões que mais contribuiu para a cisão entre este órgão e o Alto-Comissário". "Na tomada de posse do Governo de Transição, estranhei não ter visto Iko Carreira que era um dos meus interlocutores favoritos no MPLA.
Muito discretamente indaguei o porquê deste ausência, tendo sido informado que, logo após a cimeira do Algarve, tinha seguido para Moscovo a fim de escolher e seleccionar armamento para as FAPLA. Fiquei triste, primeiro porque se tinha acabado de assinar um acordo de paz, depois porque este acto era mais um sinal claro e evidente do futuro que esperava Angola.
Passados uns dias encontrava-me no aeroporto aguardando a chegada do avião de Moçambique onde viajava o almirante Vítor Crespo, Alto-Comissário daquele Estado, para lhe apresentar cumprimentos e trocar impressões sobre a situação naquele território.
 Durante aquele período de espera, aproximou-se o Major Moreira Dias, comandante da Polícia Militar, informando que tinha aterrado um avião Dakota proveniente de Cabinda e que o pessoal do MPLA não deixava proceder à inspecção da carga, como estava determinado. Contactado um dos responsáveis do movimento, Hermínio Escórcio, garantiu que o avião só transportava fardamento e medicamentos. Apenas lhe disse que ordens são ordens e voltando-me para o Moreira Dias: «Mande proceder à inspecção da carga do avião.»
Afinal as fardas e aspirinas haviam-se transformado em armas pesadas, como canhões sem recuo, morteiros, bazucas, entre outras. O avião foi de imediato selado, tendo o armamento seguido no dia seguinte para o batalhão de Caçadores Pára-quedistas onde ficou sob a sua custódia". "Regressei a Luanda pilotando o B-26 que também já tinha o seu destino marcado: a sucata. Não sei se ainda haveria outros B-26 em outras partes do mundo. Tinha dúvidas.
 Mas este episódio não foi mais que um parêntese, um momento de descontracção, no dia-a-dia da vida dum Alto-Comissário que procurava, remar contra a maré, salvar alguma coisa daquela terra, se ainda era possível salvar fosse o que fosse".
 "Entretanto fui informado de que, na sequência da viagem do Iko Carreira a Moscovo, cargueiros soviéticos tinham chegado ao porto de Ponta Negra no Congo-Brazzaville onde descarregavam grandes quantidades de material de guerra destinado ao MPLA.
 Este material tinha começado a entrar em Angola muito especialmente por via marítima e desembarcado nas praias desertas da imensa costa angolana, tanto a norte como a sul de Luanda. Impedir estes desembarques, de que os outros movimentos tinham conhecimento e conduziam a um clima de maior tensão, era uma missão praticamente impossível por exigir um esforço de patrulhamento com meios aéreos e navais que ultrapassavam em larga escala as nossas disponibilidades.
Assim o material de guerra ia entrando, dotando os novos efectivos do MPLA com um potencial de combate que eles nunca tinham tido durante toda a guerra isto conduziu a uma superioridade em relação aos outros movimentos que provocaram reacções mais ou menos violentas, matando à nascença toda e qualquer tentativa de cooperação.
Mas não é só armamento que chega do Leste, pois segundo o Cônsul norte-americano, que me pedira o máximo de sigilo, também alguns conselheiros, especialmente da RDA (Alemanha do Leste) tinham entrado em Angola para fazer «turismo» e que, a curto/médio prazo, estariam previstas outras ajudas significativas quer em material quer em pessoal.
Naturalmente procurei saber se eles próprios, norte-americanos, estavam a reagir a este assalto".
 "É curioso e oportuno recordar que, uns anos mais tarde, nas funções de comandante-chefe nos Açores em 1983, me encontrei com um general norte americano e ao falar-se de África e inevitavelmente de Angola, confidenciou-me que nos princípios de 1975 pilotara um C-130 várias vezes para Kinshasa integrado numa espécie de ponte aérea.
Aterravam durante a noite e paravam ao fundo da pista, apagando as luzes. Entretanto aproximavam-se viaturas pesadas de carga para as quais era transferido o material que transportavam enquanto um autotanque procedia ao reabastecimento do avião. Terminada a operação, voltavam a alinhar na pista e descolavam.
Frisou que tinha sido uma autêntica ponte aérea para Kinshasa com muitas toneladas de armamento.
Não revelou qual o ponto de partida, admitindo que tivesse sido na Libéria.
Na sua opinião este material só poderia ter um destino: FNLA através de Mobutu.
Não havia dúvidas, as movimentações diplomáticas com a mudança de Cônsul em Luanda e de Embaixador cm Lisboa e este apoio logístico só poderia ter um significado: tentar evitar que a URSS estendesse a sua influência a Angola.
E os dois «jogadores», através dos seus tentáculos, estavam novamente em plena actividade para conseguirem o controlo daquela importantíssima parcela do território africano".
 "A cimeira de Nakuru iria decorrer depois de o MPLA ter executado no terreno a primeira parte do plano para ficar «rei e senhor» de Luanda até ao dia marcado para a independência. Apesar da vantagem adquirida e da situação favorável de que desfruta, o MPLA aceita participar na cimeira sendo o único movimento a pretender que Portugal estivesse presente pois não deveria ser marginalizada em tudo o que pudesse estar relacionado com a descolonização, até à transferência do poder. Mas isto é mais complexo e tem as suas razões.
Sem dúvida que a UNITA, militarmente muito fraca por falta de armas, tem todo o interesse em resolver os problemas que estão afectar o processo da descolonização através do diálogo e dos compromissos de ordem política; a FNLA começa a reconhecer a sua fragilidade por falta de estruturas de base em todos os campos, o que a leva à dependência cm relação ao Zaire para manter o esforço militar contra o MPLA.
A grande maioria dos combatentes do ELNA só falava francês.
Ou são mesmo zairenses, ou angolanos que se refugiaram naquele país ainda muito jovens e que naquele momento estavam a ser recrutados para as forças militares da FNLA. Esses elementos, após terem recebido instrução em Kinkusu, ministrada por chineses, são atirados para a «fogueira» sem qualquer motivação".
 "Entretanto, face à ligação do MPLA às estruturas do MFA, a presença portuguesa poderia conduzir a uma posição ainda mais reforçada do MPLA.
Para além das frequentes acusações da cooperação das FAP com as FAPLA, o que não deixa de ser verdade em casos isolados, por vezes difíceis de discernir, a realidade era que as acusações da FNLA não cessavam; a ligação da CPPA e estruturas do MFA, em Angola, com os dirigentes do MPLA, era claramente evidente. Pessoalmente, não tinha quaisquer dúvidas: as visitas de Agostinho Neto e outras figuras destacadas do movimento a Lisboa e os contactos que mantinham com entidades oficiais eram mais uma prova do posicionamento nacional em relação aos movimentos; a cópia da carta onde o Bureau Político do MPLA pedia ao Alto-Comissário a prisão e expulsão dos ex-elementos da PIDE/DGS, enviada directamente para o Conselho da Revolução, era mais um testemunho do apoio que o Governo português concedia a este movimento.
 Por estas e outras razões, nem a UN1TA, nem FNLA pretendiam a presença portuguesa em Nakuru onde até poderiam introduzir alterações ao Acordo do Alvor com reflexos nas responsabilidades de Portugal, em todo o processo. As autoridades nacionais não revelavam qualquer interesse em participarem, na medida em que sabiam que de Nakuru iria sair só mais um «papel» que a FNLA e principalmente o MPLA iriam de imediato ignorar ou meter na gaveta". "Entretanto as relações entre o Alto-Comissário e a CCPA agravaram-se rapidamente pois quebrara-se a confiança que entre ambas as entidades deveria existir. Em vez daquela coesão e unidade que se deveria verificar entre todos os órgãos da representação portuguesa cm Angola, o MFA constituía a nota dissonante em todo o processo, com a agravante de se considerar o «dono do poder» nacional no território e, como tal, a entidade que pretendia definir as linhas da nossa actuação em face do evoluir da situação.
 Um dia, em meados de Junho, o Zé Valente telefonou-me e pediu para eu convocar de imediato o Leonel e o Macedo, pois tinha uma comunicação muito urgente".
 "Praticamente todas as questões acordadas já tinham sido objecto de decisões anteriores e que não foram minimamente respeitadas quer pela FNLA quer pelo MPLA.
Ressaltam no entanto dois pontos que merecem uma maior atenção. Pela primeira vez é abordada a necessidade da existência das Forças Armadas de Angola, em especial, do Exército angolano.
Esta tinha sido uma das minhas primeiras preocupações logo após ter assumido as funções de membro da Junta Governativa cm Julho de 1974, procurando formar uma companhia de pára-quedistas não partidária e que pudesse vir a constituir o embrião do futuro exército de Angola. Chegou-se até à cerimónia da imposição das boinas aos vinte e oito elementos que iriam constituir os quadros dessa companhia.
Mas depressa a maioria desta gente, aliciada pelo MPLA com o apoio do MFA, desertou e foi integrar-se nas FAPLA. Assim morria uma tentativa de criar um instrumento da maior importância para a fase de transição que estávamos a viver, evitando-se a existência de três «exércitos» partidários em vez de um único, nacional".
 "Recordo as longas discussões durante os primeiros encontros com Savimbi nas matas do Leste sobre as forças militares dos Praticamente todas as questões acordadas já tinham sido objecto de decisões anteriores e que não foram minimamente respeitadas quer pela FNLA quer pelo MPLA. Ressaltam no entanto dois pontos que merecem uma maior atenção. Pela primeira vez é abordada a necessidade da existência das Forças Armadas de Angola, em especial, do Exército angolano. Esta tinha sido uma das minhas primeiras preocupações logo após ter assumido as funções de membro da Junta Goovernativa cm Julho de 1974, procurando formar uma companhia de pára-quedistas não partidária e que pudesse vir a constituir o embrião do futuro exército de Angola.
Chegou-se até à cerimónia da imposição das boinas aos vinte e oito elementos que iriam constituir os quadros dessa companhia. Mas depressa a maioria desta gente, aliciada pelo MPLA com o apoio do MFA, desertou e foi integrar-se nas FAPLA. Assim morria uma tentativa de criar um instrumento da maior importância para a fase de transição que estávamos a viver, evitando-se a existência de três «exércitos» partidários em vez de um único, nacional.
Recordo as longas discussões durante os primeiros encontros com Savimbi nas matas do Leste sobre as forças militares dos movimentos durante as quais defendi a abolição total das armas dos movimentos que deveriam limitar a luta ao nível político-ideológico".
 "Fui mal-sucedido certamente porque o Presidente da UNITA não ignorava que os seus rivais se preparavam para a tomada do poder pela força apoiados do exterior.
Posteriormente, quando consegui reunir os cabeças das delegações dos três movimentos presentes em Luanda no Comando da 2." Região Aérea, os pontos discutidos envolviam a futura polícia de Angola, posteriormente designada como Corpo de Polícia de Angola c um serviço de informações devidamente estruturado. Tudo morreu no papel porque a concretização destes instrumentos iria interferir com os planos dos dois principais movimentos com estratégias impostas do exterior e que nada tinham a ver com os interesses do povo angolano. Ao tomar conhecimento das conclusões do acordo de Nakuru pensei como tudo teria sido diferente se as iniciativas que tomei em tempo tivessem sido concretizadas. Se em vez de três «exércitos» e dum embrião de Polícia sem autoridade e objecto de saques e prepotências de toda a ordem por todos os movimentos, Angola dispusesse de um único exército verdadeiramente angolano e totalmente apartidário, dum Corpo de Polícia organizada e prestigiada e dum serviço de informações bem estruturado e isento que permitisse conhecer, em cada momento, a situação real do país.
Estes tinham sido os meus sonhos que infelizmente para Angola c para os angolanos não passaram de sonhos. Para isto era necessário tempo e vontade política de todas as partes envolvidas, mas o MFA, Mário Soares e outras figuras políticas surgidas durante a revolução acharam que era urgente encontrar uma solução para a «vergonhosa» guerra colonial.
E naquela altura começava a desenhar-se uma das maiores tragédias para aqueles povos porque a guerra fria entre as grandes potências passaria a quente quer em Portugal quer em Angola, não passando todos nós de simples instrumentos da política dos outros com a criminosa colaboração de algumas figuras que, espero, a história um dia não deixará de julgar".
 "Mas finda a cimeira, que não passou de mais uma manobra para enganar uma parte do mundo e muito especialmente o povo angolano, em vez de se cumprirem as questões acordadas, verificava-se: • a entrada de reforços para o MPLA com a chegada a Luanda de elevado número de efectivos e para a FNLA pela fronteira norte onde não encontrava qualquer oposição e por Teixeira de Sousa onde esbarrara com as forças das FAPLA originando conflitos de certa gravidade;
 • mais dois cargueiros soviéticos atracaram em Ponta Negra transportando material pesado para o MPLA;
 • a situação hospitalar deteriorava-se em cada dia que passava, principalmente em Luanda onde os hospitais de S. Paulo e Universitário continuavam encerrados e o hospital de Maria Pia atingia o ponto de saturação, mas igualmente os de Cabinda e Carmona estavam em riscos de encerrar com consequências gravíssimas para o apoio sanitário daquelas áreas;
 • o número de desalojados e deslocados aumentava sem cessar, não se dispondo de quaisquer estruturas para a sua assistência sendo tudo improvisado;
 • as atitudes inconvenientes dos movimentos não pararam, dando origem a uma cada vez maior instabilidade e insegurança por todo a parte;
 • o êxodo da população europeia continuava, tendo as inscrições em meados de Junho subido para um total estimado em 47. 000 famílias compreendendo um número de pessoas superior a 140 000". "Este era o panorama que se verificava na sequência do acordo de Nakuru que, como todos os restantes, tudo fazia prever que se caminhava rapidamente para uma situação de total rotura, onde o respeito pelos direitos e vidas dos cidadãos seriam totalmente ignorados.
 Imperava a lei da serva em que só as armas tinham voz e em que os únicos vencidos seriam as populações.
Mas toda esta situação não impediu que uma comissão mista composta por elementos do Ministério do Interior e da justiça, oficiais dos Estados-Maiores do ELNA; FAPLA e FALA e por membros do Comando Unificado da Polícia, se reunissem para estudar as medidas para darem início ao cumprimento do acordo de Nakuru, tendo deliberado:
 • Libertação imediata e incondicional de todos os detidos pelos ML. No dia seguinte a situação agravou-se e o incêndio avançou até ao interior. A população branca estava positivamente em pânico e só queria fugir tosse para onde fosse. Organizaram-se colunas de viaturas com rumo ao Sul.
 Não tinham tempo a perder. Os pretos afectos à FNLA tinham invadido a cidade do asfalto e estavam concentrados por todo o lado, muito especialmente, em frente ao palácio e junto ao Comando Naval. Uma mãe com o cadáver do filho nos braços pretendeu entregá-lo ao Alto-Comissário, tendo sido impedida pelos pára-quedistas. Por detrás duma das janelas ainda presenciei uma dessas cenas completamente derrotado e vencido pela comoção. Não era fácil olhar aquele mar de gente em desespero e nada poder fazer.
 Contactei o Leonel e disse-lhe, para com os navios de guerra disponíveis, começar a transportar aquela gente, vítima da traição que sobre o povo angolano caíra, para Sazaire onde dominava a FNLA.
 Assim se fez. Mas não era o suficiente porque o «incêndio» era, naquela altura, perfeitamente incontrolável e novos «focos» surgiam por toda a parte".
 "Foi com este panorama que um sábado, pela manhã, entro no gabinete e passo em revista os papéis que o Gonçalves Ribeiro tinha colocado sobre a secretária. Naturalmente e, em primeiro lugar, peguei no relatório semanal dos SIM onde estavam descriminadas as atitudes inconvenientes da responsabilidade dos ML.
A violência recrusdecera por toda a parte, tinham aparecido corpos de pessoas há muito desaparecidas, mais saques, mais violações, mais gente raptada, todo um rol de atrocidades que continuavam a passar impunes visto a ordem e a segurança terem sido praticamente banidas de todo o território. Era o salve-se quem puder! Fui depois informado que várias pessoas, cada uma com o seu problema e qual deles o mais grave, pretendiam falar comigo.
O Gonçalves Ribeiro, como normalmente, lá as conseguiu despachar com as mesmas promessas de sempre: «vamos fazer tudo o que for possível...»
Através da janela podia ver os deslocados, os fugitivos, os perseguidos, os inconformados que vagueavam em frente do palácio, talvez por se sentirem ali mais seguros ou ainda esperarem uma qualquer solução para os seus problemas".
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40 ANOS 25 DE ABRIL E DE INDEPENDÊNCIA

Cronologia 1974-2002: Das independências ao fim da guerra em Moçambique e Angola

Depois da Revolução dos Cravos, sucedem-se as independências das colónias portuguesas. Logo em 1975, os movimentos angolanos iniciam um conflito armado pelo controlo do país. A guerra civil dura até o ano de 2002.

Cerimónia realizada em Madina de Boé após o reconhecimento por Portugal da independência da Guiné-Bissau

10 de setembro de 1974

Independência da Guiné-Bissau
O acordo de Portugal com o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) sobre a independência da Guiné-Bissau é ratificado no dia 10 de setembro de 1974. A Guiné-Bissau passa a ser a primeira colónia portuguesa em África que conquistou a independência. Os portugueses começam então a abandonar a capital, Bissau. Após a independência, e até 1980, a Guiné-Bissau e Cabo Verde passam a ser dirigidos por um único partido, o PAIGC.

28 de setembro de 1974

Tentativa de golpe
A 28 de setembro, o Movimento das Forças Armadas (MFA) proíbe uma manifestação de apoio ao Presidente António de Spínola. A tentativa de golpe de Estado levada a cabo por forças próximas ao general Spínola e a rejeição da política do MFA não dá frutos. Barricadas de populares cortam os acessos a Lisboa. Na sequência do golpe falhado, Spínola apresenta a sua demissão. O seu sucessor é Francisco da Costa Gomes, membro da Junta de Salvação Nacional e chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas desde o 25 de abril de 1974. A influência comunista cresce cada vez mais no país.

Barricadas de populares e de militares após os acontecimentos do 28 de setembro de 1974

Janeiro de 1975

Acordo de Alvor
Decorre de 10 a 15 de janeiro no Alvor, Algarve, uma cimeira para debater a independência de Angola. O Acordo de Alvor é assinado no dia 15 de janeiro entre o Governo português e os três principais movimentos de libertação angolanos: Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e estabelece os parâmetros para a partilha do poder na antiga colónia. O dia 11 de novembro é estabelecido como a data da independência do país. No entanto, pouco depois da assinatura do documento, os movimentos iniciam um conflito armado pelo controlo do país. Começava, assim, a guerra civil em Angola.

Delegados portugueses e angolanos presentes nos encontros de Alvor: Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal (segundo da esq.), Jonas Savimbi da UNITA (terceiro da esq.), Holden Roberto da FNLA (quarto da esq.), Costa Gomes, Presidente de Portugal (terceiro da dir.) e Agostinho Neto do MPLA (segundo da dir.)

25 de abril de 1975

Primeiras eleições livres em Portugal após 50 anos
Um ano depois da Revolução dos Cravos, realizam-se eleições para a Assembleia Constituinte. São as primeiras eleições livres com sufrágio universal realizadas nos últimos 50 anos em Portugal. O grande vencedor foi o Partido Socialista (PS), que conquistou quase 38% dos votos (116 assentos), seguido do Partido Popular Democrático (PPD, que mais tarde passaria a designar-se Partido Social Democrata, PSD) com pouco mais de 26% dos votos (81 assentos) e do Partido Comunista Português (PCP), que conseguiu perto de 12,5% dos votos (30 assentos). No mês seguinte, os conflitos entre o PS e o PCP agravam-se e a extrema-esquerda ocupa a Rádio Renascença, emissora católica portuguesa.

Mesas de voto em Lisboa. As eleições para a Assembleia Constituinte tiveram lugar a 25 de abril 1975

25 de junho de 1975

Independência de Moçambique
Moçambique torna-se independente de Portugal em 25 de junho de 1975, depois de mais de uma década de guerra de libertação. A Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) forma o primeiro Governo, dirigido por Samora Machel, o primeiro Presidente do país. O novo Executivo leva a cabo uma série de medidas para restituir ao povo moçambicano os direitos que lhe tinham sido negados pelos portugueses durante a época colonial. São também criadas várias empresas estatais. Em Angola, a guerra aumenta de intensidade e faz crescer o fluxo de “retornados”, nome dado aos residentes nas antigas colónias que voltaram para Portugal. Nas antigas colónias estavam radicados cerca de 600 mil portugueses.

À meia-noite do dia 25 de junho de 1975, soldados da FRELIMO hastearam a nova bandeira nacional na então capital Lourenço Marques (atual Maputo)

Julho de 1975

“Verão Quente” em Portugal
Em Portugal assiste-se a um processo de contestação ao Governo e a uma disputa aguerrida pelo poder político-militar. Assaltos e ataques bombistas contra sedes dos partidos marxistas-leninistas marcam os meses de julho e agosto. A crise governamental levou à queda do Executivo e, posteriormente, à demissão do primeiro-ministro Vasco Gonçalves. Este período de tensão em Portugal ficou conhecido como “Verão Quente” e culminou com as movimentações militares de 25 de novembro. O país esteve à beira de uma guerra civil.

Os acontecimentos ocorridos em 1975 em Portugal quase levaram a uma guerra

5 de julho de 1975

Independência de Cabo Verde
A independência de Cabo Verde é proclamada no dia 5 de julho de 1975. O primeiro Presidente da República do país é Aristides Pereira, que juntamente com Amílcar Cabral fundou o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

Aristides Pereira a prestar juramento como Presidente da República de Cabo Verde

12 de julho de 1975

Independência de São Tomé e Príncipe
Uma semana depois da independência de Cabo Verde, a 12 de julho, também São Tomé e Príncipe se torna independente. Manuel Pinto da Costa, que desempenhou um papel importante na luta pela independência do regime colonial português, assume a presidência do país.

Manuel Pinto da Costa foi o primeiro Presidente de São Tomé e Príncipe entre 1975 e 1991. Vinte anos mais tarde, em 2011 (foto), vence as eleições e volta à presidência

11 de novembro de 1975

Independência de Angola
No dia 11, em Luanda, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) proclama a independência da República Popular de Angola. Agostinho Neto assume a presidência do país. Portugal reconhece o Governo do MPLA. Em Nova Lisboa (atual Huambo), a FNLA e a UNITA também proclamam a República Democrática de Angola, que a comunidade internacional nunca virá a reconhecer. Continua a guerra civil angolana: UNITA e FNLA lutam com o apoio da África do Sul contra o Governo do MPLA, que tem o apoio de soldados cubanos. É uma das guerras mais sangrentas durante o período da Guerra Fria, que ficou marcado pelo conflito entre os EUA e os seus aliados ocidentais, que apoiaram a UNITA e FNLA, e a União Soviética e os seu aliados orientais, que apoiaram o MPLA. Devido às riquezas naturais e potencialidades económicas de Angola, o processo de descolonização deste território foi o mais longo entre todas as colónias portuguesas.

Cartaz do MPLA representando Agostinho Neto e o povo angolano

28 de novembro de 1975

FRETILIN proclama independência de Timor
A Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN) proclama a independência do território em 28 de novembro de 1975. Três dias depois, o território, que tinha sido a mais esquecida das colónias portuguesas, é invadido pela Indonésia. O Governo indonésia temia um país vizinho comunista, já que a FRETILIN era de inspiração marxista. Depois do golpe militar no ano de 1965, o regime do General Suharto já tinha massacrado entre 500 mil e dois milhões indonésios para eliminar fisicamente os movimentos comunistas e democratas. A seguir à invasão indonésia em 1975, a FRETILIN refugia-se então nas montanhas, onde continua a resistência armada, enquanto as tropas portuguesas se refugiam na ilha de Ataúro. Em 1976, o governo de Jacarta anuncia que Timor-Leste será integrado na Indonésia. “Timor Timur” passa a ser a sua 27ª província. Timor foi considerado pela ONU como território português até 1999. Nesse ano, a maioria dos timorenses votou pela independência da Indonésia no referendo realizado por Jacarta. Como retaliação do resultado, forças de oposição à independência e grupos paramilitares ligados ao Governo de Jakarta espalharam a violência e a morte pela região. De 1974 a 1999 morreram pelo menos 102 mil pessoas por causa da ocupação pela Indonésia. Timor-Leste só se tornaria um país independente em 20 de maio de 2002.

Comício da Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN) em Timor-Leste (1974)

1976

Guerra civil em Moçambique
Começa a guerra civil entre a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), que se prolongaria até 1992. Além de paralisar o país em termos económicos e sociais, o conflito de 16 anos provocou a morte um milhão de pessoas e fez mais de três milhões de refugiados. Durante o conflito, travado em plena Guerra Fria, a FRELIMO é apoiada pela União Soviética, enquanto a RENAMO conta com a ajuda do regime branco da Rodésia e, a partir de 1980, também da África do Sul.

Soldados zimbabueanos a patrulhar a linha ferroviária do Corredor da Beira durante a guerra civil (foto de 1987)

1992

Fim da guerra civil em Moçambique
Com a mediação da Comunidade de Sant’Egídio, organização religiosa fundada em Itália, a 4 de outubro é assinado, em Roma, Itália, o Acordo Geral de Paz entre o Governo moçambicano e a RENAMO, pondo fim a 16 anos de guerra civil. O conflito deixou mais de um milhão de mortos e transformou país num dos mais pobres do mundo. Em 1990 já tinha sido aprovada a revisão da Constituição que introduzia o sistema multipartidário em Moçambique. A FRELIMO punha de parte a ideologia marxista-leninista.

Joaquim Chissano (FRELIMO, à esq.) e Afonso Dhlakama (RENAMO, à dir.) apertaram as mãos em Roma no dia 4 de outubro de 1992

2002

Fim da guerra civil em Angola
No dia 4 de abril de 2002 a paz chegou a Angola com a assinatura do acordo de Luanda entre o governo do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) MPLA e a União Nacional pela Independência Total de Angola (UNITA). As duas formações políticas com mais influência no país pousaram as armas, pondo, assim, fim a 27 anos de uma guerra civil que causou pelo menos 500 mil mortos e mais de dois milhões de refugiados. A seguir à paz, Angola viveu um "boom" económico graças ao petróleo, atingindo um crescimento de mais de 20 % em 2005 e em 2007. Mas apesar deste crescimento, muitos angolanos continuam até hoje a viver na pobreza.

General Armando da Cruz Neto (à esq.) das Forças Armadas de Angola e general Abreu Muengo Ukwachitembo "Kamorteiro" da UNITA na assinatura do acordo de paz em Luanda a 4 de abril de 2002
BIBLIOGRAFIA:
Afonso, Aniceto/Gomes, Carlos de Matos, Os Anos da Guerra Colonial - 1961.1975, Lisboa, Quidnovi, 2010.
Cervelló, Josep Sánchez, A Revolução Portuguesa e a sua Influência na Transição Espanhola (1961-1976), Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.
Marques, A. H. Oliveira, Breve História de Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 2006.
Rodrigues, António Simões (coordenador), História de Portugal em Datas, Lisboa, Temas e Debates, 2000 (3ª edição).

Agradecimento especial:
Casa Comum (Fundação Mário Soares)

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